Descrição de chapéu
Marilene Felinto

Bolsonaro detona crise civilizatória no Brasil, onde o sujo fala do mal-lavado

Não bastasse a incoerência estrutural do governante, é preciso lidar com o cinismo das críticas de seus ex-aliados

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A crise civilizatória instalada no Brasil desde que a extrema direita ocupou o poder segue amplificando em decibéis de esculhambação a pandemia do coronavírus. Não bastassem a dimensão e a gravidade da praga, é temer sobretudo pela irresponsabilidade criminosa da Presidência da República, pela mascarada bufa dessas autoridades de um governo sem nenhuma qualificação e de uma ignorância espantosa quanto à função que deveria exercer.

Ainda que especialistas digam que a aparente ignorância de Bolsonaro seja uma estratégia planejada (para “terceirizar” a suposta crise econômica que virá), o comportamento do homem nesta hora de calamidade, seu discurso de barata tonta, seu gestual, sua dicção, seu ethos, ou seja, a imagem que ele passa para o público assombram até mesmo gente que se dizia aliada e eleitor dele.

Por exemplo, foi um espetáculo de horror a presença do presidente na entrevista coletiva de 23 de março, cercado por um inexpressivo grupo de homens de seu governo. A gestualidade travada deu-lhe ares de boneco incomodado, aprisionado dentro do terno — traje com o qual não se acostuma, porque mais afeito ao uniforme militar, ao coldre e à bala, balançando-se de um lado para o outro enquanto lia titubeante a redação canhestra, como estudante de quarto ano do ensino fundamental.

Na coletiva, a título de resposta aos pedidos de “ajuda” de governadores e prefeitos, ele cuspiu valores em bilhões e bilhões de reais que ninguém sabe para onde vão nem se chegarão a quem realmente precisa (a oferta demagoga de R$ 200 mensais aos autônomos durante a epidemia já tinha soado como ultraje).

O discurso inconsistente revelava a insegurança típica de quem nem sabe nem acredita no que está falando. Pregou “união” na luta contra o vírus. Entretanto, já no dia seguinte, desdisse-se radicalmente no pronunciamento em cadeia nacional: a gagueira do discurso ganhou tons de crítica e ameaça aos estados e municípios que adotaram restrições à circulação de pessoas, o que afetaria negativamente a economia.

Não bastasse a incoerência estrutural do governante, e sua perversidade, tem-se que lidar também com o cinismo das críticas de seus ex-aliados e eleitores. Na crise civilizatória, sujos falam dos mal-lavados. A cacofonia de nomes de golpistas de direita, todos responsáveis pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela consequente ascensão dos fascistas ao poder, é de impressionar —tudo gente do mesmo naipe, farinha do mesmo saco, e que, agora, no pandemônio deflagrado por eles próprios, querem aparecer como menos piores do que o grupo de fascistas no governo federal.

Exemplos de ponta: João Doria (PSDB), governador de São Paulo, querendo dar de “gestor” competente e “líder” comandante do caos (mas não passa de outro perverso neoliberal à la Bolsonaro, mais perigoso ainda, porque ocultado sob a camada do verniz marqueteiro); Wilson Witzel (PSC), governador do Rio de Janeiro, tão partidário do genocídio de pobres e pretos quanto a própria política do representante do Planalto (Witzel dá ordem para sua polícia matar nas favelas do Rio).

Não bastasse essa sequência de monstruosidades do trem fantasma em que se transformou a coisa pública no país, exige-se ainda —especialmente de nós que já envelhecemos tanto e temos jogada na nossa cara apenas a nossa fragilidade nesta hora— que nos localizemos no meio dessa babel do desgoverno e dos discursos de todo tipo.

Temos de lidar com o vale-tudo da informação e da contrainformação sobre a doença, com a miríade de opiniões às vezes contraditórias (de médicos, nutricionistas, especialistas de todo tipo, jornalistas, empresários, leigos enxeridos etc.). Escreve-se qualquer coisa e se diz qualquer coisa.

Exemplo da qualquer coisa: circulando por redes sociais e compartilhado inclusive por médicos e gente bastante culta, um vídeo do apresentador de TV Marcos Mion, no qual ele exortava a população a ficar em casa contra o contágio porque, segundo ele, “um gráfico do banco JP Morgan que casa com a fala do ministro da Saúde, Mandetta” previa pico da curva de casos confirmados para uma determinada data de abril.

Mion ainda tentava “esclarecer”, no vídeo, com a seguinte ressalva sobre o gráfico que havia recebido: “atribuído ao JP Morgan, pois já não se sabe o que é fake news”. E concluía dizendo: “Para ter esse pico, nessa data, as pessoas estarão se contaminando entre hoje e quarta-feira [de 22 a 25 de março]. Ou seja, redobrar os cuidados agora”.

O apresentador de TV se autoelevou à categoria de comentarista de saúde sem nem mesmo ter certeza da veracidade do gráfico a que se referia. Não bastasse isso, conduziu também à categoria de analista de saúde pública um banco, o JP Morgan, uma das organizações financeiras mais representativas da exploração capitalista, da desigualdade e da injustiça social no mundo, alvo de investigação em vários países por fraude na rapina bancária.

Não bastasse a enorme tragédia política brasileira, ainda temos de lidar com esse tipo de mídia e com a terminologia financista, economicista, com a briga do financismo contra a defesa da saúde, a briga do capital improdutivo —o sobe e desce da Bolsa, o preço do dólar— contra a prevenção e o aporte em saúde pública.

Em análise do livro de Ladislau Dowbor, “A Era do Capital Improdutivo”, o economista Paulo Kliass alerta para o tempo em que estamos vivendo, tempo em que as finanças dominam e impõem suas condições diante dos demais setores de atividade da economia. “Estamos no interior do reinado do rentismo”, afirma Kliass, “e da apropriação parasitária da riqueza produzida pela maioria”.

Não bastasse, portanto, tanta ignomínia nacional e internacional, ainda se exige de nós cumplicidade com o discurso da demagogia. Na mídia televisiva, por exemplo, a propaganda oportunista tem um tanto desse ultraje demagogo.

É o caso de outro animador de auditório, Luciano Huck, da Globo, ele que, por trás da fachada de defensor dos pobres e oprimidos, protagoniza um anúncio de TV sobre uma rede de delivery em que afirma, sorridente, que delivery, na pandemia, é forma de “comprar com segurança”. Não é à toa que o já mencionado governador João Doria usou expressão similar em pronunciamento recente sobre isolamento social. Disse que “delivery é meio criativo” de comprar.

Não se pode esquecer também que Luciano Huck, que se pretende candidato à Presidência da República (outro desastre de proporções incalculáveis), é sócio do empresário Junior Durski, apoiador ferrenho do governo fascista e que minimizou recentemente em público as mortes causadas pelo coronavírus.

Demagogia é o que não falta também na imprensa noticiosa corporativa, a mesma que também contribuiu para a ascensão do fascismo ao poder no país e que agora se arvora a emissora da “verdade” e porta-voz da “confiança” do público. No apelo à adesão, à “união”, a estarem “juntos” para combater o vírus, o subterfúgio, a mensagem falaciosa que tenta tratar os excluídos como se incluídos estivessem. Incluídos em quê? Juntos com a imprensa em quê? Nunca estiveram. Não estão. Não estarão.

Este presente artigo (por demagogo que possa soar) é dedicado ao Berinjela, morador da periferia de São Paulo que gravou um vídeo dentro de um trem superlotado para denunciar a condição em que se encontra a população pobre no redemoinho da pandemia.

Berinjela (ou “Beringela”, como aparece grafado no vídeo da TV Estrela, no YouTube) perdeu o pai no corredor de um hospital público, por negligência e falta de atendimento digno. Com vocês, o discurso verdadeiro, este sim, do Berinjela:

Marilene Felinto

Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Email: textosfazendaria@gmail.com

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.