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Depois de 'Frankenstein', Mary Shelley escreveu sobre uma pandemia

Seu romance 'O Último Homem' anteviu tanto as causas políticas quanto as soluções coletivas para a peste global

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Eileen Hunt Botting
The New York Times

O mundo vacila, dominado pela ansiedade coletiva, no meio de uma pandemia. Uma peste desconhecida e letal estende seus tentáculos pelo planeta. Devasta as populações humanas e ao mesmo tempo enfraquece seus sistemas econômicos e políticos interligados. Um grupo de elite de líderes políticos se reúne para indagar: “O que deve ser feito diante de uma crise global de saúde pública?”.

Essa narrativa deve soar familiar. Mas não estou resumindo as manchetes sobre a Covid-19. Estou recordando a trama de uma grande obra literária: o romance futurista de Mary Shelley sobre uma peste global, “O Último Homem”, de 1826.

Shelley previu que o desastre de uma pandemia seria movido pela política. Essa política seria profundamente pessoal, mas exerceria influência internacional. A crise de saúde que se multiplicaria seria causada pelo que os povos e seus líderes haviam feito e deixado de fazer no palco internacional —no comércio, na guerra e em outros pactos, conflitos e barganhas interpessoais.

Enquanto damos ouvidos aos avisos dos cientistas de que estamos ingressando na “era das pandemias”, podemos nos beneficiar da leitura de “O Último Homem”, enxergando-o como o primeiro grande romance pós-apocalíptico. Em sua segunda grande obra de ficção científica depois de “Frankenstein”, de 1818, Shelley, filha de dois filósofos, apresentou a seus leitores uma ótica existencial para lidar coletivamente com a ameaça de um desastre global criado pelo homem.

“O Último Homem” é ambientado no ano 2100. O conflito que move o romance é uma doença altamente contagiosa. Como o coronavírus, a peste da qual trata o livro se dissemina por uma combinação de partículas aerotransportadas e contato com portadores. Em ambos os casos, ela foi incubada, exacerbada e deixada avançar descontrolada pelo comportamento humano destrutivo.

“O Último Homem” foi tão influente que já conhecemos sua trama básica, mesmo que ainda não o tenhamos lido. O livro apresenta a história do suposto único sobrevivente de uma praga global. Como ocorreu com “Frankenstein”, “O Último Homem” já foi retrabalhado diversas vezes nos gêneros da ficção científica e do horror, desde as obras de Edgar Allan Poe até incontáveis filmes de apocalipse e zumbis inspirados em “The Last Man on Earth” (no Brasil, “Mortos que Matam”), de 1964. Este último foi protagonizado por ninguém menos que o rei do horror, Vincent Price, no papel do último humano que resta no planeta depois de um contágio virulento ter convertido as outras pessoas em vampiros.

No romance de Mary Shelley, é um homem chamado Lionel Verney que acaba nessa situação precária e extrema. Em sua reformulação alegórica das narrativas bíblicas da queda e do renascimento da humanidade, Verney é um pastor humilde que se casa com uma garota da família real, no castelo de Windsor, e em pouco tempo chega ao topo da liderança do país. Ele atua como assessor de confiança de lordes, ministros e legisladores, enquanto a peste surge em Constantinopla e vai pouco a pouco se alastrando até Londres.

Verney lidera uma expedição de sobreviventes da peste que partem da república da Inglaterra, que entrou em colapso, rumo à costa esvaziada da Itália, onde ele termina sozinho, contemplando o futuro.

Ele sobe até o topo da cúpula da basílica de São Pedro e grava na pedra o ano em que está vivendo, 2100. Dessa perspectiva sublime, contempla o que restou da civilização humana. Ele evoca a esperança de que haja outros sobreviventes em algum lugar do planeta. No quadro final, Verney parte numa épica viagem marítima para tentar descobri-los. Para acompanhá-lo na viagem, leva alguns sinais de sua humanidade: seu cão de estimação e as obras de Homero e Shakespeare. Embora Verney não tenha certeza de que vai encontrar outros humanos, ele discerne uma obrigação mais profunda consigo mesmo e com todo o planeta de agir conforme manda essa esperança.

Em outras palavras, Verney compreende que, mesmo que seja o último homem na Terra, precisa viver como se não fosse. Ele precisa conservar a humanidade, agindo com base em seu sentimento profundo da interligação entre seu destino e outras formas de vida, humanas ou não.

Mary Shelley terminou de escrever “O Último Homem” quando era uma viúva de 28 anos. Estava chorando a morte de seu marido, o poeta Percy Bysshe Shelley, e de três dos filhos deles. Sua primeira filha nascera prematura e sobrevivera menos de duas semanas; a filhinha seguinte morrera de febre, e seu filho primogênito morrera de malária. Então seu marido morreu num acidente em um barco a vela, ainda jovem e no auge de sua carreira. Escrever “O Último Homem” foi o esforço de Shelley para aceitar as tragédias da vida sem perder esperança na própria humanidade.

A escritora localizou as raízes humanas de sua praga fictícia numa guerra de séculos entre a Grécia e a Turquia. Cientistas teorizam que o novo coronavírus que está se alastrando nasceu de um misto tóxico de fatores econômicos, políticos e ambientais em torno do mercado irregular de carne de animais selvagens na China e outros países.

Desde então, a questão da origem do vírus virou objeto de um jogo irresponsável entre países tentando pôr a culpa uns nos outros, com seus líderes disseminando rumores de que o coronavírus seria uma arma biológica do exterior ou até negando a gravidade da crise de saúde pública em seus próprios territórios. Como vem ocorrendo com a epidemia de coronavírus, em “O Último Homem” viajantes disseminam a doença fatal entre continentes, contaminando suas próprias famílias e comunidades.

Como o primeiro romance de Mary Shelley, “Frankenstein”, “O Último Homem” é uma obra de ficção científica e política. Em “Frankenstein”, um cientista abandona sua criatura fabricada artificialmente, e isso gera sofrimento para eles e para a comunidade, numa sequência de efeitos que vão se alastrando.

A adolescente Shelley pode ter se identificado com o chamado monstro de Victor Frankenstein, pois seu nascimento matara sua própria mãe, Mary Wollstonecraft, em uma infecção cirurgicamente transmitida.

De modo semelhante, “O Último Homem” nasceu da experiência da autora com perdas pessoais devastadoras. Depois de Shelley ter sofrido uma crise mental, sem saber se conseguiria continuar vivendo depois de perder quase todos que amava, ela redigiu uma resposta cosmopolita a essa pergunta existencial. O final inesperadamente esperançoso de “O Último Homem” sugere que todos os desastres, por mais perigosos que sejam para indivíduos ou países particulares, dizem respeito, em última análise, à responsabilidade da humanidade perante o mundo como um todo.

Mais sábia do que se poderia esperar de alguém de sua idade, Mary Shelley nos recorda, por meio da voz heroica de Verney, que sempre, mesmo quando estamos diante da catástrofe absoluta, devemos agir movidos pela esperança de conservar aquilo que nos torna seres amorosos, humanos e ligados uns aos outros.

Quando lemos as narrativas sobre os surtos crescentes de coronavírus pelo mundo afora, sentimos preocupação, até medo, especialmente por nós mesmos e nossos entes queridos. Mas, como Mary Shelley e seu avatar Verney, precisamos evocar a força para olhar mais além desse medo, buscando uma atitude de esperança e um esforço coletivo para superar os problemas. Apenas assim poderemos cooperar humanitariamente para combater a expansão da Covid-19, em vez de contribuir para mais um desastre epidemiológico internacional.

Eileen Hunt Botting é professora de ciência política na Universidade Notre Dame

Tradução de Clara Allain

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