Descrição de chapéu

Em nova música, Bob Dylan mostra por que foi antena de sua geração

'Murder Most Foul', primeira inédita do cantor desde 2012, tem 17 minutos e fala do assassinato do presidente John Kennedy

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Oito anos após suas últimas inéditas, no disco “Tempest”, de 2012 —apesar de, nesse período, ter lançado vários álbuns em que canta clássicos americanos—, Bob Dylan ressurge com uma canção de 16 minutos e 56 segundos sobre o assassinato do presidente John Kennedy, em novembro de 1963.

O título é uma expressão intraduzível de Shakespeare, em uma cena em que o Fantasma diz a Hamlet “murder most foul”. Ele diz que assassinatos são sempre terríveis, mas esse é ainda pior ("most foul") por ter sido cometido por um irmão contra o outro.

Mas será “Murder Most Foul” mesmo uma canção? Não há, para começar, um refrão que se repete, mas isso é normal na obra de Dylan. Há piano, baixo, bateria e violino. Sua voz está bem grave, fugindo com sucesso do timbre rasgado ouvido nos últimos anos. Mas depois de escutar, é difícil cantarolar ou assobiar a música, se é que é possível fazer isso.

Ela não tem melodia, tão cara ao rock e à música pop. Dylan, então, não canta; ele praticamente declama 1.376 palavras –contagem do jornal El País– na obra mais longa que lançou em sua carreira de 58 anos. “Murder Most Foul” se encaixa melhor numa definição de poema musicado do que na de canção propriamente dita. Também não foi lançado videoclipe; o single traz apenas uma foto de Jack Kennedy –vivo– como imagem de capa.

Dito isso, é uma obra monumental, pois Dylan narra os tiros ao presidente e suas consequências ao mesmo tempo em que traça um panorama da cultura pop nos anos 1960. Dezenas de canções e artistas são lembrados, de músicos a atores, além de citações a frases, discursos e expressões famosas nos Estados Unidos.

Mas isso não é novidade, sendo que a mais famosa obra nesse estilo é “American Pie”, de Don McLean, gravada em 1971. Cantando sobre o acidente de avião que matou Buddy Holly e Ritchie Vallens em 1957, McLean também cita inúmeros artistas e canções, fechando os versos sempre com o refrão “the day that music died”, ou o dia em que a música morreu. Essa tem oito minutos e 33 segundos, um tempo já enorme para músicas do gênero.

Talvez o maior prazer em escutar os 17 minutos do novo Dylan seja, como em “American Pie”, encontrar as referências que ele entrega. Os Beatles são os primeiros a serem citados, no verso “The Beatles are coming, they’re gonna hold your hand”, que significa “os Beatles estão chegando, eles vão segurar sua mão”, mas é mais que isso.

“I Wanna Hold Your Hand” foi a canção que apresentou os Beatles aos Estados Unidos, chegando ao topo das paradas em janeiro de 1964, dois meses depois da morte de Kennedy.

Assim, o poeta vai fazendo brincadeiras e jogos de palavras que podem ou não ter significados escondidos. Outras citações são os shows de Woodstock e de Altamont, onde um espectador foi assassinado na frente do palco dos Rolling Stones, em 1969.

Uma das mais legais é “Living a Nightmare in Elm Street”, ou vivendo um pesadelo na rua Elm, sendo que “Nightmare on Elm Street” é o título original do filme que passou aqui em 1986 como “A Hora do Pesadelo”, em que o maníaco deformado Freddie Krueger aterrorizava adolescentes nos sonhos com suas garras de metal. Mas Elm também é o nome da rua em que Kennedy foi morto em Dallas.

Dylan ainda cita “Tommy”, do Who, “Don’t Let Me Be Misunderstood”, sucesso com os Animals, e “Another One Bites the Dust”, do Queen. Também lembra jazzistas, rocks dos anos 1950 e, no trecho final, diz para tocar várias canções, nomeando uma a uma. Na última linha, manda tocar “Murder Most Foul”, já inscrevendo sua composição entre as grandes.

Falta de humildade, talvez? Sim, mas vale lembrar que Dylan sabe do que está falando. Sua “The Times They’re A-Changing”, ou os tempos, eles estão mudando, se tornaria, em janeiro de 1964, o hino de uma geração que passava por mudanças sociais, comportamentais e políticas, turbinadas ainda mais pelo assassinato do presidente à frente da nação.

É fato que Dylan lançou a canção dois meses depois da morte de JFK, mas o espantoso é que ele a gravou um mês antes, em outubro de 1963. Por essas e outras, Dylan se tornou a maior antena de sua geração nos anos 1960. E sua revisitação àquela época, por mais que careça de melodia, é algo que vale ser ouvido.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.