A cabeça de um bebê, o pé direito de uma criança cortado em três pedaços, um coração humano e pedaços de pele tatuada. Essas macabras partes humanas foram postadas no correio de Bancoc, endereçadas aos Estados Unidos.
O perturbante episódio verídico é descrito nas primeiras linhas de “O Caminho Imperfeito”, o novo livro de não ficção do português José Luís Peixoto que sai agora pela editora Dublinense. Nele, o autor narra suas experiências na Tailândia.
A obra marca o retorno do escritor ao gênero de relato de viagem. Antes, Peixoto havia publicado suas impressões sobre a Coreia do Norte no livro “Dentro do Segredo”, lançado pela Companhia das Letras há seis anos.
“São dois países da Ásia, o que é uma coincidência. Ainda assim, acabam sendo países que mostram o quanto a Ásia é um continente diverso e amplo. São duas realidades extremamente diferentes, com características únicas”, afirma Peixoto.
Alternando capítulos curtos e longos, movendo-se entre memórias da infância e juventude e a vivência na capital tailandesa, Peixoto foge das descrições de praias paradisíacas e templos magníficos.
“Acho interessante tentar ver por baixo da narrativa do turismo, além do cartão-postal, da história exótica que se conta muitas vezes para colocar no Instagram ou Facebook”, conta o escritor.
“O turismo muitas vezes pode dar a falsa sensação de efetivamente ter conhecido a realidade de um país. No caso da Tailândia, com uma cultura muito rica e, em grande medida, diferente da nossa, se corre o risco de ignorar traços importantíssimos ao seguir uma interpretação vinda de uma construção artificial feita para ser consumida”, analisa.
O escritor emprega recursos de sinestesia e explora odores, sons e sensações, ou circunstâncias, nas palavras dele. “A realidade é multidimensional, não se apresenta apenas com um sentido ou outro. Isso tem a ver com a literatura, com a palavra escrita, uma vez que a literatura permite tentar essa espécie de alquimia com sentidos e sentimentos”, explica.
A figura do ”kathoey”, como são chamados os transgêneros naquele país, é constante nas páginas. A temática aproxima a narrativa de Peixoto ao conto “Tai Toom”, do livro “En el Hotel Cápsula”, editado pela casa Mansalva há três anos e ainda sem tradução para o português, da argentina Lucía Puenzo.
Também passado na Tailândia, o conto de Puenzo, porém, apresenta uma “kathoey” com nome e sobrenome, Nong Toom, uma lutadora de muay thai, a arte marcial tailandesa. No seu livro, Peixoto explica por que prefere o neologismo “ladyboy” no lugar de ”kathoey”.
“Parece-me que a palavra ‘ladyboy’ junta duas formas benévolas de designar feminino e masculino. Parece-me que ‘lady’ tem boa intenção, ‘boy’ também.”
Todavia, as personagens aparecem em contextos mais sexualizados do que no enredo de Puenzo. Peixoto escreve, por exemplo, sobre a experiência em um bar “sujo e escuro”.
“As bolas de pingue-pongue que a mulher disparava com a vagina batiam na parede com toda a força, perto da minha cabeça. Eu tentava segurar as muitas mãos da ladyboy. Os seus dedos deslizavam-me no pescoço ou abriam-me um botão da camisa. Em biquíni, a ladyboy sentava-se às vezes no meu colo, eu sentia-lhe o hálito no rosto, sorria às piscadelas das suas pestanas postiças”, escreve.
Antes de “O Caminho Imperfeito”, Peixoto lançou no Brasil, no ano passado, o livro “Autobiografia”, enviado para os cerca de 50 mil assinantes do clube de leitura TAG Curadoria, editado em Porto Alegre. A publicação marcou os cinco anos da TAG e tem como protagonista o escritor português José Saramago.
“Foi incrível e uma grande responsabilidade chegar a um número tão vasto de leitores. É um livro bastante diferente deste, mas acaba por ter uma ligação que é a relação com a realidade. No caso de ‘Autobiografia’, há presença de Saramago. Mas são livros quase que escritos por pessoas diferentes”, conta.
Ainda no ano passado, o português lançou o infantil “Todos os Escritores Têm a Cabeça Cheia de Piolhos” pela editora Projeto!, igualmente editado na capital gaúcha.
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