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Ficção sobre criança angustiada é soturna e cômica

Livro de Mariana Salomão Carrara é delicado e bem escrito

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Se Deus Me Chamar Não Vou

  • Preço R$ 40 (160 págs.)
  • Autor Mariana Salomão Carrara
  • Editora Nós

Maria Carmem, com m, tem 11 anos e é a narradora desse livro delicado, bem escrito, algumas vezes engraçado e causador de uma solidão avassaladora. Na primeira página, a frase “Se eu pudesse brilhar de dor eu seria um escândalo” já te prepara para diversas outras igualmente bonitas e tristes.

A brincadeira proposta pela paulistana Mariana Salomão Carrara (defensora pública e colecionadora de prêmios literários) é a de que estamos lendo, em primeira mão, o diário que Maria Carmem escreve em seu computador. A princípio, os textos são para mostrar à professora de redação (que acha que a aluna leva jeito), mas depois, conforme a garota começa a expor muito a família, os relatos ficam guardados para um dia, talvez, serem publicados e ela se tornar uma escritora de verdade.

E então ficamos sabendo que Maria Carmem não tem amigos, não tem namorados (em sua fantasia ela gostaria de ter, apesar da idade) e definitivamente não tem o corpo dentro dos padrões necessários para evitar o bullying cotidiano: é gorda e muito grande para sua idade: “meus colegas me mandam tirar a cabeça da frente da lousa”. Só que ela é tão sozinha, mas tão sozinha, que chega a sentir falta quando esquecem de empurrá-la, bater em seu rosto ou ofendê-la pertinho do ouvido.

Capa do livro "Se Deus Me Chamar Não Vou"
Livro "Se Deus Me Chamar Não Vou", de Mariana Salomão Carrara - Reprodução

Sua mãe, não bastasse ser bonita e usar roupas justas e charmosas que lhe caem muito bem, ainda é amada pelo marido, o que só aumenta a sensação de desamparo da filha. Quando não estão dançando animados e perfeitos a música “Livin’ La Vida Loca”, os pais de Maria Carmem trabalham em uma loja que ela chama de “loja de velhos”, vendendo todo o tipo de coisa para que o fim da vida se torne menos desconfortável. A garota ajuda no atendimento e torce para que algum colega da escola apareça e a veja tão madura e incrível explicando sobre fraldas geriátricas e meias térmicas.

Um dia a menina tem uma ideia brilhante para movimentar os negócios e manda um e-mail para um rapaz chamado Leonardo, que ela vê na televisão falando sobre “produtos e gestão de gerontologia”. A aparição desse homem bonito, gente boa e tocador de sanfona, acaba mexendo com a vida da família toda.

Quando um vizinho morre em casa “de repente” e completamente sozinho, Maria Carmem, assustada, começa a prestar bastante atenção na própria respiração, tentando prever e controlar sua morte: “como eu não quero ficar sozinha morta vou correr e fugir até meu nome ecoar por todas as nuvens”. Tenta ainda controlar as fezes, segurando ao máximo a vontade de ir ao banheiro, porque deseja ser uma pessoa mais limpa.

O maior êxito do livro está em passagens sombrias mas espirituosas, que parecem ser de fato ditas por uma criança, ou construídas por uma autora bastante hábil e segura em contar essa história: “adultos se divertem. Crianças se divertem. Eu não sei se estou exatamente na idade em que ninguém faz nada de bom, ou se isso de diversão simplesmente acabou pra mim”.

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