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Momento mais célebre de Martinho Lutero talvez nunca tenha acontecido, diz historiadora

Livro questiona episódio em que ele teria pregado um panfleto com 95 teses contra abusos da Igreja Católica

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São Carlos (SP)

A primeira surpresa que aguarda o leitor da biografia “Martinho Lutero: Renegado e Profeta”, da historiadora australiana Lyndal Roper, tem relação direta com o ato mais dramático da trajetória do reformador religioso, presente até em livros didáticos do ensino fundamental.

O célebre momento em que ele teria pregado um panfleto com suas 95 teses contra os abusos da Igreja Católica nas portas de uma igreja alemã talvez nunca tenha acontecido, explica ela.

 
Pintura de retrato de Martinho Lutero
Martinho Lutero - Wikimedia Commons

“Lutero, pessoalmente, nunca mencionou o ocorrido”, escreve Roper. “Disse apenas que enviou cartas ao arcebispo Albrecht de Mainz e ao bispo de Brandemburgo, remetendo às teses em anexo. Outros sugeriram que, de modo bem menos teatral, as teses foram coladas, e não pregadas à porta.”

As dúvidas lançadas sobre o momento emblemático que deu início à Reforma Protestante em 1517 são, no entanto, a menor das surpresas da caudalosa biografia escrita pela historiadora da Universidade
de Oxford. O Lutero que emerge das páginas do livro está muito longe de se encaixar na imagem tradicional de santo ou sábio, apesar de seu brilhantismo teológico e literário.

O mesmo religioso que escreveu páginas tocantes sobre a graça de Deus e produziu traduções da Bíblia também era um sujeito colérico e autoritário, cujos escritos contra o papa, contra camponeses rebeldes e contra o judaísmo estão repletos de linguagem grosseira e escatológica.

Embora tenha inspirado outros reformadores Europa afora a romper com o catolicismo, sua intransigência em assuntos de fé transformou vários desses aliados de primeira hora em inimigos quase tão viscerais quanto o papado.

Parte da belicosidade e da língua ferina de Lutero talvez se expliquem pelas origens rudes e duronas da família no condado mineiro de Mansfeld, na Saxônia, onde Hans Luder, pai do futuro reformador, tinha uma concessão de uma mina de cobre da região.

Supervisionar o trabalho de extração do cobre exigia disciplina, tino para os negócios e autoridade. Luder queria que o filho estudasse direito para defender a família em disputas legais envolvendo as minas. Contudo, após anos de estudo na universidade, o jovem Lutero decidiu se tornar monge, entrando para a ordem dos agostinianos, para a fúria do pai.

A vida no mosteiro, entretanto, com a rotina regulada pelas poucas horas de sono e muitas horas de oração e penitência, minava a saúde e o ânimo de Lutero. Ele se saiu melhor como professor de teologia da Universidade de Wittenberg. Mas suas reflexões sobre o papel da fé acabaram por levá-lo a condenar com veemência a prática da cobrança de indulgências —contribuições financeiras para a Igreja que acelerariam a ida das almas para o paraíso.

Ao atacar as indulgências em suas 95 teses, Lutero solapou a autoridade da hierarquia católica como mediadora entre os fiéis e Deus, já que, para o alemão, a fé em Jesus Cristo era suficiente para que o perdão dos pecados fosse alcançado.

Num processo complexo, ele acabou sendo excomungado, mas o apoio de membros da alta nobreza alemã fez com que o reformador escapasse da fogueira e começasse a criar sua própria igreja.

O ex-monge concluiu que seria impossível obter a salvação por conta própria. Paradoxalmente, isso o levou a adotar uma atitude mais positiva em relação ao corpo humano e ao sexo do que a da maioria dos pensadores medievais: já que Deus salva o homem apenas pela fé, não era preciso se preocupar tanto com jejuns ou com a castidade dos padres. Ele acabou se casando com uma ex-freira, Katharina von Bora, com quem teve seis filhos.

“Lutero conseguiu manter num tenso equilíbrio a convicção sobre a liberdade do cristão e a crença de que os seres humanos não têm liberdade de ação. Toda ação humana vem manchada pelo pecado e a condição da vontade humana é a escravidão. Somos livres e não livres”, escreve Roper.

A biógrafa do reformador contrasta habilmente essa atitude “moderna” de Lutero em relação ao sexo com a intolerância virulenta que demonstrava em relação ao judaísmo. Segundo ele, os cristãos, ao ver um judeu, deviam “atirar esterco de porco nele e colocá-lo para correr”. No fim da vida, recomendou que todas as sinagogas fossem incendiadas.

Martinho Lutero: Renegado e Profeta

  • Preço R$ 99,90 (568 págs.)
  • Autor Lyndal Roper
  • Editora Objetiva
  • Tradução Denise Bottmann
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