Descrição de chapéu

Nelson Leirner corroeu por dentro o narcisismo do mundo das artes

Sua morte marca momento de silêncio depois de ondas de trabalhos ruidosos que escancararam as entranhas dos museus

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São Paulo

“O artista é sempre um cara que provoca.” Nelson Leirner poderia ter tatuado a frase que fez valer ao longo de décadas construindo obras que desestabilizaram os pilares do mundo da arte.

Sua morte, no sábado, aos 88, marca um momento de silêncio depois de ondas de trabalhos ruidosos que escancararam as entranhas das galerias e dos museus. Chega ao fim, sem alarde, sua tentativa de corroer por dentro —e com deboche mordaz— um universo mergulhado no narcisismo.

Leirner foi o artista que mandou um porco empalhado como obra a um salão de arte, detonando um intenso debate, e ensinou como copiar seus trabalhos, esvaziando qualquer possibilidade de lucro. Foi censurado por desenhar cenas eróticas sobre imagens de bebês e chegou a boicotar a Bienal de São Paulo.

Também tentou distribuir fotocópias de seus desenhos e chamou outros artistas para criar uma série de trabalhos que mostraria depois como peças suas. Era a sua ideia de rechaçar o toque do artista, desconstruindo qualquer aura em torno das obras de arte.

Muitas de suas instalações e esculturas, aliás, são alegorias criadas com brinquedos, adesivos e objetos encontrados em supermercados. Nesse sentido, Leirner levou a ideia de ready-made nascida com o urinol de Marcel Duchamp à esfera do ultrakitsch. Sua obra muitas vezes se ancora na cafonice desavergonhada, que agride a ideia de bom gosto de defensores de uma arte que não se deixa contaminar pelo popularesco.

O ataque à afetação high brow, bem arquitetado por Leirner, só foi possível porque ele nasceu no olho do furacão. Filho de um dos casais mais influentes do cenário artístico paulistano nas décadas de 1950 e 1960, o artista cresceu vendo quadros de Tarsila do Amaral e Lasar Segall pendurados na sala de casa.

Também observava como o pai, um conselheiro do Museu de Arte Moderna e da Bienal de São Paulo, articulava para moldar o circuito ao seu redor, muitas vezes construindo e destruindo reputações.

Entre elas, a sua. No início de sua vida como artista, seus pais, à frente de um império têxtil e bem relacionados no mundo da arte também pelo fato de sua mãe, Felícia, ter se tornado uma escultora renomada, acionaram a agenda para ver suas obras aceitas em salões, resenhadas por críticos do momento e apreciadas pelos chefões dos museus.

Leirner então se esforçou para desfazer a jogada e se lançar como um artista na contramão do sistema que conheceu de perto.

O que veio depois daquelas primeiras tentativas frustradas foi uma série de trabalhos, mostrados em 1965 na extinta galeria Atrium, que atacavam bases sagradas das obras de arte. Entre eles, estava uma paródia em que o rosto de um macaco surgia batizado “Mona Lisa” e também um enigmático quadro com fechaduras de porta gigantes sobre um fundo espelhado, que devolvia ao espectador a imagem perplexa de seu próprio rosto a contemplar as fendas para o interior do trabalho.

Leirner dizia ali, tal como batizou esta última obra, “Você Faz Parte”, que todos no mundo da arte estão envolvidos na construção e sucesso, real ou fake, de um espetáculo meio vazio.

Um fundo de melancolia, por mais reluzente que fosse a superfície de seus trabalhos aferrados ao efeito fantástico do plástico, sempre se deixava ver pelas frestas. Nesse ponto, Leirner não se entregou por completo à estética da arte pop, que então dominava grande parte do mundo.

No ano seguinte à mostra da Atrium, o artista formou ao lado de outros cinco nomes da época, entre eles Geraldo de Barros e Wesley Duke Lee, o grupo Rex, que contestava a lógica do mercado de arte. A galeria-protesto que fundaram acabou fechando as portas com um happening em que o público podia levar para casa aquilo que quisesse.

Em paralelo ao Rex, Leirner criou um altar com a figura de Roberto Carlos traçada em luzes neon no lugar de Cristo. Em frente à imagem do ídolo, uma catraca filtrava o público, que em tese teria de pagar para ver.

'Adoração/Altar para Roberto Carlos', instalação do artista plástico Nelson Leirner - Divulgação

Desde os primeiros anos da juventude, Leirner se interessava pela lógica do espetáculo nas sociedades capitalistas. Ele estudou nos arredores de Boston, na virada dos anos 1940 para os 1950, e passava fins de semana numa Nova York ainda eufórica pelo fim da Segunda Guerra, cheia de luzes e anúncios, como ele lembra.

Mas sua obra não se apropriava de figuras de celebridades com a mesma intenção dos americanos.

Leirner estava menos interessado na difusão em massa de imagens de fundo comercial que se tornavam fantasmagóricas com a repetição febril e mais preocupado em desconstruir as estratégias de circulação e valorização das obras numa sociedade ainda distante de um momento em que as artes visuais se tornassem uma indústria de escala hollywoodiana.

Encerrada a fase Rex, Leirner mais uma vez causou polêmica ao criar uma série de telas de tecido colorido com zíperes, que podiam ser abertos ou fechados para revelar outras camadas de cores distintas.

Algumas delas aludiam a nomes importantes da história da arte —sua ode a Lucio Fontana, artista famoso por telas rasgadas ao meio, numa contestação violenta da primazia do plano bidimensional na pintura, trazia um grande zíper de ponta a ponta de um quadrado, uma tela passível de ser violentada inúmeras vezes.

O artista também profanaria, anos mais tarde, catálogos de leilões. Volumes da Sotheby’s, uma das maiores casas do ramo no mundo, muitas vezes se transformavam em álbuns de figurinha, com adesivos cobrindo os trabalhos, ou eram atravessados por objetos em instalações mais ácidas.

Não resta dúvida que o campo de atuação de Leirner se restringiu em grande parte ao mundo da arte, num dos mais sólidos exemplos de artista que encampou a chamada crítica institucional, com obras que questionam sua própria circulação, no cenário brasileiro do século passado.

Uma de suas séries mais irônicas, aliás, desanca o peso histórico que as vanguardas geométricas, o concretismo e o neoconcretismo, tiveram sobre os artistas do país. Em “Construtivismo Rural”, Leirner revisitou a matriz de peças clássicas dessa vertente usando couro de boi no lugar da tinta automotiva abraçada por muitos dos artistas do movimento, revelando por trás de um anseio de futuro as bases de um país ainda em desenvolvimento e às voltas com seu passado violento de colônia extrativista.

Leirner, ao longo de sólidas décadas, foi a voz de dentro do circuito no país que mais atacou suas insondáveis contradições, um grito feroz a favor das obras e contra tudo que as sufoca.

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