Descrição de chapéu The New York Times

Paris vive dias de vírus, alienação burguesa e rebeldia mimada na semana da moda

Confira o que aconteceu nas passarelas da temporada outono-inverno no último final de semana

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Vanessa Friedman
The New York Times

O final de semana começou nos salões dourados do Ministério do Exterior francês, uma edificação grandiosa da metade do século 19, nas margens do rio Sena, onde as fundações da União Europeia foram estabelecidas e onde, na noite de sexta-feira (28), a estilista Diane von Furstenberg foi sagrada cavaleira da Legião de Honra francesa por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, em reconhecimento por seus serviços às mulheres e à renovação da Estátua da Liberdade.

Terminou no palco do teatro Bouffes du Norde, onde Kanye West e 120 cantores de gospel levaram o chamado "Sunday Service" de West ao décimo arrondissement, e muita gente cínica da moda terminou pulando das cadeiras para bater palmas e cantar em uníssono. O cantor também fez um show para a marca Yeezy, na noite de segunda-feira (2).

Quase ninguém usava máscaras de proteção, nos dois eventos, mas, no período interveniente, a meia-maratona de Paris foi cancelada e os editores de moda em visita à cidade começaram a fazer planos para partir com antecedência. Estamos nesse ponto. Tudo oscila entre a solidariedade e o isolamento. E não só por causa dos vírus.

Hedi Slimane fez seu desfile para a grife Celine, como sempre, em uma gigantesca caixa preta à sombra dos Invalides, onde Napoleão está sepultado —mais de cem combinações de calças “pipe cleaner” e paletós “lounge lizard”, blusas de seda bufantes e culotes burgueses, vestidos diurnos abotoados e vestidos noturnos dourados em estilo cigano, tudo isso em uma parada incansável de conformidade para homens e mulheres (os looks eram todos unissex).

Esse é o mundo de Slimane. Ele o vem construindo de maneira muito calculada, tijolo têxtil após tijolo, desde que chegou à casa (primeiro os vestidos, depois os culotes, depois os jeans). Agora, o estilista enfim reuniu todos os elementos.

É um mundo repleto de mercadorias: bolsas, óculos de sol, lenços de seda estreitos para usar em volta do pescoço, coisas que os varejistas definem como “itens” (mesmo o perfume foi mencionado nos créditos do desfile).

É um mundo de atitude, alienação burguesa e rebelião mimada. Tem a força e o atrativo do que vem pronto para o uso (literalmente: a maioria dessas roupas já havia sido mostrada, décadas atrás). E é tão fácil de identificar e tão restritivo quanto um modelo tamanho zero. Todo aquele veludo trazia à mente não só roupas, mas os cordões de isolamento que protegem as entradas das casas noturnas em que os cidadãos de Slimane se divertem.

Não há espaço, na Celine de Slimane, para os modelos mais velhos e os modelos de tamanhos diferentes que começam a se infiltrar em outros desfiles. Os meninos e meninas que ocupam a passarela –mesmo aqueles que usam roupas perpétuas têm os membros esbeltos e longos de bebês girafa de cara amarrada. Mesmo neles, os jeans pareciam tão apertados que meu vizinho de cadeira se inclinou em minha direção e disse: “Isso está me dando dor nos testículos”.

Modelo desfila com roupas desenhadas pelo estilista Hedi Slimane durante a Semana de Moda de Paris, em 2020
Modelo desfila com roupas desenhadas pelo estilista Hedi Slimane durante a Semana de Moda de Paris, em 2020 - Valerio Mezzanotti/The New York Times)

Slimane tem um compromisso para com a imagem da Celine e a construiu usando uma placa de “proibido o acesso” para aqueles que não cabem, em todos os sentidos da palavra. Talvez você consiga usar uma peça aqui, outra ali, mas, como dizia Groucho Marx, por que fingir ser parte de um clube que não quer aceitá-lo como sócio? Alguém realmente precisa disso?

Especialmente agora, quando as coisas estão derivando para o tribalismo, e a moda, em reação, vem enfatizando sua inclusão e sua consciência de que, como setor, ela funciona melhor quando as fronteiras são frouxas e as demais culturas são representadas; quando toda espécie de história –cultural e social, dolorosa e jubilosa– termina parte do mesmo caldo, todas combinadas para produzir algo de genuinamente novo e relevante; quando liberdade e individualidade são celebradas como valores essenciais. Tanto para os estilistas quanto para os consumidores.

“Vou continuar a ser como sou”

Por coincidência, o desfile da Celine aconteceu no mesmo dia em que foram entregues os prêmios César, o Oscar francês, e um filme sobre Olivier Rousteing, da Balmain, menino negro que foi adotado na infância por um casal francês branco, era um dos indicados ao prêmio na categoria documentário.

“Wonder Boy” acompanha a busca do personagem por seus pais biológicos e a jornada de Rousteing da fímbria para uma posição central no mundo da moda (na segunda-feira, ele estava sentado ao lado de Brigitte Macron, a primeira-dama da França, num jantar no palácio do Élysée para celebrar a fashion week).

Rousteing passou a vida buscando um lugar, e isso dá forma à sua moda –de maneiras muitas vezes desconfortáveis e desajustadas, mas que também sinalizam o acesso a um mundo que antes lhe era vedado. Ele –nós– talvez não conseguisse acesso a esse mundo, no passado. Mas agora, todas as pessoas estão livres para vestir seus códigos como bem preferirem.

Isso que inclui ombreiras gigantes, minissaias estampadas com cavalos e correntes, e os blazers de Krystle Carrington, com botões de bijuteria gigantes que fazem do corpo um triângulo isósceles invertido. Assim como peças em tons bronze e caramelo envolvendo os quadris, calças pregueadas largas e vestidos que incluem capas, como para uma "supermulher" do Caesars Palace na década de 1980.

Mas o que mais se destacava em meio a toda a ostentação visual eram peitorais de couro graciosos –e a presença de Helena Christensen e Esther Cañadas, modelos da década de 1990, entre algumas mulheres mais velhas na passarela.

Modelo posa com criação de Olivier Rousteingem semana de moda de Paris, em 2020
Modelo posa com criação de Olivier Rousteingem semana de moda de Paris, em 2020 - Gonzalo Fuentes/REUTERS

Como disse Haider Ackermann depois de um desfile de serenidade intensa e rigorosa, determinada pela alfaiataria das peças (ele é um estilista capaz de desenhar e cortar uma jaqueta que parece tão calma e envolvente quanto uma brisa), “o que importa é não se curvar e lutar por estar presente”. Com peças em branco, preto, cinza, amarelo néon, verde maçã e azul celeste –aquilo que melhor couber.

E caso você não sacasse, havia citações de Dorothy Parker –uma das escritoras favoritas do estilista, disse Ackermann nos bastidores do desfile, enquanto ganhava um abraço do ator Timothée Chalamet e ouvia a lista de todos os modelos que este queria “roubar”.

Frases como “se você não gosta de mim como sou, vá para o inferno, meu amor” e “serei sempre como sou, porque não estou nem aí” apareciam bordadas nas mangas e cintos de algumas jaquetas. Não peça desculpas por ser quem é, as roupas afirmam: em lugar disso, desfrute de toda a singular glória que isso propicia.

Pode entrar, a água está ótima!

O estilista como ditador é uma forma de pensar que ficou no passado da moda. Afinal, isso já está mais presente do que desejaríamos na política que nos cerca.

Em lugar disso, agora temos o estilista como um anfitrião acolhedor, a exemplo de Joseph Altuzarra, que –na coleção mais sofisticada e mais plenamente realizada que ele apresenta em muitas temporadas– ofereceu um vislumbre da história de sua família: conjuntos ao modo dos anos 1940, com decotes em "V" e saias estreitas e cinturas definidas por correntes finas, inspirados por peças que ele encontrou no baú de sua avó e ressaltados pelo uso de chinelos com detalhes em plumas.

Outro exemplo é Nadège Vanhee-Cybulski, na Hermès, com suas roupas sem ego em materiais suntuosos, que sussurram apenas para a pessoa que as vestem. (O esforço necessário para ouvir é tão grande que às vezes você sente vontade de que elas se anunciem um pouco mais alto).

Em lugar disso, temos Junya Watanabe, expondo os ossos e os tendões de uma ideia em sua miríade de possibilidades. Desta vez o tema é Debbie Harry, ídolo da juventude da estilista, em um coral ruidoso de couro, tule, roupas masculinas e frentes falsas, com volume nos quadris acrescentado por bolsas; algo que visto por um lado parecia previsível, pelo outro revelava estar amarrado ao corpo. De uma ou de outra maneira.

E Kei Ninomiya, da Noir, parecia estar cultivando arbustos humanos bem aparados, com massas de plumas vermelhas, tule, peles falsas e babados flamencos. Ele envolvia os corpos em filamentos dourados, como se fossem sensores em torno do tronco, e escondia vestidos curtos e adoráveis por sob tudo isso (sim, ele faz roupas que se pode vestir, também).

Ninomiya também parece ter criado aves do paraíso com base em muitos matizes de falsas barbas escocesas? O quê? Por que não? Os materiais, como as pessoas, abrigam multidões.

Jogue de acordo com suas próprias regras

De fato, a estilista Rei Kawakubo, da Comme des Garçons, deu a cada um de seus 20 looks uma trilha sonora específica –ópera, bongôs, música clássica–, como se para sublinhar a individualidade de cada conjunto. Havia roupas em estilo flapper mas terminadas como que em uma rosca gigante; mangas que resvalavam nos joelhos e mangas inexistentes; bolhas que se projetavam de toda espécie de lugar; renda, nylon e criações que pareciam jaulas; umbigos que surgiam e desapareciam misteriosamente.

Havia armações que suspendiam mantilhas diante do rosto e construções tridimensionais que pareciam travesseiros de avião deformados, em torno de cinturas e pescoços. Às vezes, as roupas pareciam ser tendas móveis, ou sementeiras; às vezes pareciam ser vestidos de casamento. O que estava acontecendo? Kawakubo não explicou. Bem, ela nunca explica.

Suas roupas muitas vezes não fazem sentido como roupas. Não seguem regras exceto as próprias. Não foram criadas para uso na vida noturna ou em um jantar. Existem para que as pessoas examinem suas próprias suposições. Para forçá-las a abrir as mentes e a aceitar possibilidades que jamais haviam considerado.

É este o ponto: decida por você. Olá, liberdade. Que bom vê-la. Agora vamos todos cantar.

Tradução de Paulo Migliacci

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