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Resposta de José Padilha a críticas só reforça o pacto do racismo

Diretor de série sobre Marielle Franco tem que entender que inimigo não é a pessoa branca, mas a estrutura racial

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Jonathan Raymundo

Em outubro de 1963, numa entrevista com Herman Blake e John Leggett na Universidade da Califórnia, após ser questionado sobre como avaliava os liberais brancos que lutavam pelos direitos civis, Malcolm X deu uma resposta que é preciso ter em mente para entendermos os ditos "brancos progressistas".

Ele demonstrou que brancos liberais —nossa esquerda— diferem dos brancos conservadores —nossa direita— como as raposas diferem dos lobos. Apesar do suposto tratamento mais amigável da raposa, no fim, tal como o lobo, ela termina com o cordeiro em sua boca.

Maria Aparecida Bento, em sua tese de doutorado, nos fala da existência de um "pacto narcísico da branquidade". Nele há um acordo secreto entre as pessoas brancas, para além das diferenças ideológicas, que promove entre seus pares auxílios de todo tipo —como Narciso, que acha sempre feio o que não é espelho.

Por meio deste pacto se mantém a supremacia branca na ordem do dia. Se voltarmos a Malcolm, seja com a esquerda ou seja com a direita, o cordeiro termina na boca. Temos acompanhado no Brasil um aumento das críticas à desigualdade brutal entre negros e brancos, ao mesmo tempo que vemos muita gente segurando seus privilégios.

Não nos espantou vermos no anúncio da série sobre a vida da Marielle a presença só de brancos na criação, na produção e na direção. O pacto segue firme. Assim como não nos espanta todo o malabarismo teórico das respostas.

É preciso primeiro esclarecer a natureza do racismo. Ele não é preconceito, um defeito moral, uma falta de educação. Racismo é um conjunto de dispositivos que envolvem economia, politica, psicologia, linguagem, poder militar, domínio do discurso, do simbólico, da escrita da história, da ordem social e jurídica com a qual se forjou o domínio racial dos povos autoproclamados brancos sobre os outros. Racismo é estrutura de poder —este entendido como a capacidade de definir a realidade.

Sem entender essa complexidade, não há avanços reais. Não ficamos surpresos, pois este é um país racista. Deixada à vontade, a máquina que envolve uma produção como esta jamais trabalhará para que três pessoas negras estejam neste lugar de prestígio.

Nunca o racismo esteve tanto no debate público, e essa notícia envolvendo a história da Marielle não passaria incólume. Após as críticas de setores da comunidade negra, figuras centrais na produção se manifestaram. Agora vamos falar do diretor José Padilha.

A estratégia de Padilha foi a de não se ater aos fundamentos das criticas que demonstram mais uma vez o pacto narcísico da branquidade. Mesmo se tratando de um mulher negra que viveu sua vida na luta contra o racismo, serão mãos brancas que irão de novo narrar e se beneficiar desta história. Lembremos Vinicius de Moraes: "Porque o samba nasceu lá na Bahia, e se hoje ele é branco na poesia, ele é negro demais no coração".

Em ambos os casos o lugar reservado ao negro não é o de narrador, mas o de objeto. Ele tenta capturar o público não pelos fatos que nutrem a crítica, mas por sentimentalismos. Não encara a realidade que faz a crítica possível e acusa seus críticos de linchá-lo moralmente sem tempo de resposta. A resposta impedida, ele dá na Folha, o maior jornal do país.

Para ele, o xis da questão não é o privilégio branco, mas o ódio. Para dar robustez à sua escrita, ele lança mão de Malcolm X resumindo sua presença política a uma frase que disse ao retornar de Meca: "Seu inimigo não era o homem branco, mas o ódio".

Para Padilha, o ódio não teria razões históricas, mas nasceria nas estrelas. Ora, senhor Padilha, é óbvio que o inimigo não é a pessoa branca, mas a estrutura racial promovida pela branquidade que tem no ódio a sua premissa básica. O inimigo é o racismo.

Visando promover a "desracialização" do debate, ele lança mão da negrura do assassino do Malcolm e conclui que o debate não é sobre domínio racial, mas sobre ódio. Ele finge esquecer as sutilezas que existem neste caso e como a colonização e escravidão afetou a comunidade negra. FBI, CIA? Nada. Só o ódio estelar explica.

Se seguíssemos esse argumento poderíamos dizer que brancos não se beneficiaram da escravidão no Brasil. Aliás, alguns negros também tinham pessoas escravizadas.

Depois, ele segue falando sobre os contatos que teve com Marielle e, de novo, se põe como vítima de linchamento. Pelo amor de Exu! O caso em questão é só um exemplar da realidade brasileira.

Padilha também escreve sobre os efeitos negativos do ódio. Estamos falando de racismo em uma país que mata meninos negros a cada 23 minutos. Se críticas a um cineasta conhecido mundialmente são linchamento, como nós, negros e negras, devemos nos sentir com 111 tiros? Com nossas mães sendo arrastadas como Claudia, e nossas irmãs sendo assassinadas como Marielle?

Ao apelar aos sentimentos dos seus familiares, a gente quase duvida de que foi uma resposta a críticas, e se pergunta se a referência é o holocausto negro. Mesmo dizendo que não gostaria de falar sobre os seus feitos altruístas, ele numera a lista, como quem diz: "Viu como sou bom e progressista? Parem de me questionar". E assim, o mito do branco salvador é atualizado.

Enfim, em vez de encarar a crítica sobre o racismo que eleva pessoas medianas à altura de Spike Lee, atualizando sempre o pacto, ele preferiu se vitimizar e não se responsabilizar. O que nos faz repetir a frase de Al Hajj Malik Al-Shabazz: "Os brancos podem ficar do nosso lado nas questões pequenas, mas jamais nas fundamentais". E lembrar Sueli Carneiro: “Eu, entre esquerda e direita, continuo sendo preta”.

É professor de história e filosofia, criador e produtor do Festival Wakanda in Madureira

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