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Ser negro nesses tempos é precioso e ameaçador, diz poeta que vai à Flip

Danez Smith tem versos contundentes e reforça a intenção do festival em apostar mais uma vez na poesia falada

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São Paulo

O primeiro performer que Danez Smith admirou foi o pastor de sua igreja. Original de Saint Paul, no estado americano de Minnesota, via como quem estava no púlpito pregando se esforçava para falar do que estava além das palavras.

“Isso chegou a meu estilo de fazer performance, influenciou a minha forma de pensar o divino. Saí do caminho do cristianismo, mas isso ainda está na minha linguagem”, afirma.

Smith é um dos nomes a despontar na poesia americana contemporânea. Seu livro “Don’t Call Us Dead” foi finalista do National Book Award, enquanto o mais recente, “Homie”, já acumula elogios. As duas obras sairão em português pela editora Bazar do Tempo, com tradução de André Capilé, e Smith vem ao Brasil para ser autor da programação oficial Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, deste ano.

Depois do sucesso das apresentações de “slam poetry” no ano passado, a Flip parece continuar a apostar no gênero. A impressão causada pelos líderes religiosos deixou em Smith outra marca, que é o uso da palavra falada —sua performance lendo o poema “Dear White America”, ou cara América Branca, acumula centenas de milhares de visualizações no YouTube.

Tabia Yapp/Divulgação
Retrato de Danez Smith, que estará na Flip deste ano - Tabia Yapp/Divulgação


Contundente, o poema em prosa tem um narrador que diz ter partido da Terra para um planeta mais escuro, em busca de um novo deus, porque não confia naquele dos brancos. Ainda que as músicas sejam belas, diz, seus milagres são inconsistentes.

O texto afirma ainda ter tentado amar os brancos —mas eles faziam planos para o brunch ao lado do funeral de seu irmão, conversavam alto demais diante dos ossos do rapaz.

Como em boa parte da literatura hoje, a obra de Smith é cruzada por identidades. Não só a afroamericana, mas também a queer, soropositiva e não binária, termo para quem não se identifica completamente como masculino ou como feminino. Por isso, aliás, o texto desta reportagem não usa nenhum vocábulo com gênero para se referir a Smith —seja pronome, adjetivo ou substantivo.

Em sua língua materna, pede para ser referido com o “they” —o nosso “eles” ou “elas”, mas que a militância identitária em países de língua inglesa passou a adotar como pronome de gênero neutro no singular.

Tanto que o dicionário Merriam-Webster elegeu o termo como palavra do ano no ano passado. Mas traduzir essa opção em línguas latinas como o português é tarefa impossível, embora no Brasil já se tenha tentado usar termos como “elx” pegarem.

A igreja não foi a única escola literária de Smith, obviamente. Sua primeira relação com as artes, diz, foram nas aulas de teatro no ensino médio. Eram baseadas nas diretrizes do teatro do oprimido, de Augusto Boal.

Como não poderia deixar de ser, seus versos têm voltagem política. Em um dos poemas, o eu lírico se dirige ao número no distintivo de um policial: “O que fiz de errado?/ Nascer?/ Ser negro?/ Te encontrar?”.
“Reconheço meu trabalho como político porque ele trata do mundo em que vivo.

É um dos desafios que tenho que enfrentar. Estou pensando sobre o mundo e o que significa ser humano, ser queer, ser negro”, afirma.

Também reflete, segundo diz, sobre o que é ter o seu corpo em um país como os Estados Unidos.

“É um país muito grande para não ser diferente para cada um. Concordo que com frequência não me sinto parte dessa tal América sonhada por todos, mas sinto que sou parte das nações às quais pertenço —as Américas queer, negra e parda”, diz, acrescentando ser possível encontrar uma americanidade a partir de diferentes perspectivas.

A projeção de Smith também é fruto de um momento particular dos Estados Unidos e do mundo. Enquanto os eleitores escolhem a direita, o mercado editorial parte em busca de diversidade, com autores de outras origens étnicas e nacionais —o momento nunca foi tão propício para parcelas da população historicamente apartadas conseguirem contratos de publicação.

O escritor nigeriano Chigozie Obioma
O escritor nigeriano Chigozie Obioma - Reprodução/Chigozie Obioma

Mas Smith não canta vitória. Olha também esse movimento de forma crítica, como algo com suas contradições. E é preciso olhar os bastidores do setor, afirma.

“O mercado editorial reflete o que há de errado com os Estados Unidos. Só porque os catálogos das editoras estão mais diversos, isso não muda o fato de que as pessoas encarregadas de publicar esses livros ainda são massivamente brancas. Mas, no primeiro olhar, parece uma utopia de esquerda se realizando”, diz. “É como se dissessem: ‘Vamos criar diversidade nos livros, mas vamos manter nossos empregos’.”

Ao ouvir a pergunta sobre o fato de muita dessa literatura, além de tratar de identidades excluídas da sociedade, também tratar principalmente de traumas, Smith afirma não gostar da palavra.

“A humanidade vem escrevendo sobre trauma desde sempre. Amor, dor, sexo, morte. Isso é estar vivo. Mas nunca disse a palavra trauma em um poema. Se digo ter um trauma, isso não significa nada. Mas posso dizer como é ter um diagnóstico de HIV, como é ser negro nestes tempos —precioso e ameaçador. Disso eu posso falar. Vai além do trauma. É algo coletivo, humano”, afirma.

Smith é o segundo nome confirmado na Flip deste ano. Antes dele, o evento literário no litoral do Rio de Janeiro já havia anunciado o autor nigeriano Chigozie Obioma, finalista duas vezes do Man Booker Prize, um dos principais prêmios literários da língua inglesa. Neste ano, a festa tem como autora homenageada a poeta americana Elizabeth Bishop.

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