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Tal qual no filme de Polanski, caso Dreyfuss abalou obra de Proust

Epopeia 'Em Busca do Tempo Perdido' tem elementos abordados no novo filme do diretor acusado de estupro

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Quem já se deliciou com os sete volumes de "Em Busca do Tempo Perdido" se recorda como Charles Swann vai do céu ao inferno ao longo da epopeia de Marcel Proust. Requintado, rico, mulherengo, libertino de cepa romântica (ele se casa com a amante), colecionador de arte, o personagem, baseado em Charles Efrussi, de quem o autor foi secretário, padece sob um dos elementos emprestados pelo romance à realidade da época —o caso Dreyfuss, em 1894.

Tendo Swann como Jesus Cristo, Proust retrata a sociedade francesa do período clivada pelas acusações contra o militar Alfred Dreyfuss, apontado como espião dos alemães. Condenado, encarcerado, degredado e expulso do exército, a saga de Dreyfuss atravessa quase duas décadas até ser desmascarada como um ardil racista.

Dreyfuss é judeu, assim como Charles Swann, e execrado. Personagens como Swann, judeus da jornada proustiana e os que acreditam na inocência do militar se tornam párias nos salões da aristocracia francesa.

Não há meio-tom no período. Os defensores de Dreyfuss são postos à margem e vistos como traidores. Proust aproveita para registrar (principalmente na boca de Basin, duque de Guermantes) a equação "judeu igual traidor", portanto Swann é um pulha na sua tacanha avaliação.

Ao final, a suposta alta traição de Dreyfuss se revela um engodo: forjada por documentos falsos, servirá como álibi para a opinião pública francesa se sentir à vontade em externar seu contumaz antissemitismo.

No romance "No caminho de Swann", o primeiro da série, amizades antigas são desfeitas, ódios são escandidos e preconceitos passam a ser postos à mesa como adoráveis canapés.

A hipocrisia reina, as invejas são vestidas como ações em nome da grandeza moral (quá-quá-quá) e, fosse hoje, se falaria em Brasil acima de tudo —Dreyfuss pintado como comunista e elemento dissoluto e mau exemplo aos valores cristãos.

Depois de mostrar o comportamento de sacripantas da conservadora sociedade francesa, no derradeiro volume da saga, "O Tempo Redescoberto", publicado em 1927, já sob o impacto da assustadora Primeira Guerra Mundial, Proust acena ainda novamente para nossa contemporaneidade ao reclamar do que atualmente chamamos de fake news ou "bozochavismo de raiz".

A título de ludibriar a opinião pública, assustada com as derrotas francesas, diplomatas escrevem falsas vitórias no front. Ou expectativas sobre o final da guerra, que logo são desmentidas: o conflito irá durar longos quatro anos. É uma chacina.

Na história real, morre o poeta Apollinaire; sob Proust, o belo Saint-Loup. É quando a hipocrisia, os preconceitos e a sede de poder cobram a fatura aos ingênuos e crédulos.

Pelo jeito, a condição humana vive o moto-perpétuo do eterno retorno.

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