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Universal, filme sobre assédio expõe urgência do problema

'Não Mexa Com Ela' foi debatido na terça (10), no Ciclo de Cinema e Psicanálise

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São Paulo

Recém-contratada, uma mulher recebe elogios efusivos do chefe: primeiro ao seu desempenho, depois à sua aparência. Há um beijo forçado em uma noite de hora extra no escritório e, meses depois, um estupro durante uma viagem de negócios. Sem denunciar o caso, ela pede demissão e decide procurar emprego em outro lugar.

A trama de “Não Mexa Com Ela”, filme lançado em 2018, poderia ser em qualquer lugar do mundo, mas se desenrola em Israel. Para Manoela Miklos, coeditora do blog #AgoraÉQueSãoElas, essa universalidade revela a dimensão de um problema que só começou a ser levado a sério recentemente. “Estamos escancarando nas telas as conversas reais que precisamos ter sobre os homens”, disse.

Ela participou na terça-feira (10) da edição do Ciclo de Cinema e Psicanálise que exibiu e debateu o filme. O evento é realizado pela Sociedade de Psicanálise de São Paulo e pelo MIS (Museu da Imagem e do Som), com apoio da Folha.

Para Miklos, que é assistente especial do programa para a América Latina da Open Society Foundations, a discussão sobre assédio no ambiente de trabalho no Brasil é insuficiente, e as empresas tendem a ignorar o problema até o momento em que um caso grave ameace a reputação do lugar. “Isso obriga a liderança a se mexer, mas não é nem de longe algo estrutural”, afirmou.

“A gente tem inclusive uma dificuldade —e o filme mostra isso bem— de nomear essa violência. Muitas vezes isso não é nem dito, não tem nome. As conversas difíceis não acontecem.”

Como exemplo dessa falta de apoio, Miklos citou um caso que ajudou a divulgar em 2017. Enquanto trabalhava na novela “A Lei do Amor”, a figurinista Su Tonani disse ter sido assediada pelo ator José Mayer no camarim do Projac, estúdio da Globo no Rio de Janeiro.

Tonani publicou um relato no #AgoraÉQueSãoElas no dia em que o último capítulo da novela foi ao ar. O depoimento fez com que Mayer, que nega as acusações, fosse afastado da emissora e, mais de um ano depois, demitido. Também fez com que Miklos e a outra coeditora do blog, a roteirista Antonia Pellegrino, recebessem uma enxurrada de relatos de assédio. “As mulheres não têm a quem recorrer. Quando você vê uma possibilidade de quebra de silêncio, é um dique de contenção que se rompe”, disse Miklos.

Após o caso, ela se envolveu na coordenação do Mapa do Acolhimento, iniciativa que apoia mulheres que sofreram assédios e outros abusos. “Das pautas feministas, a violência contra a mulher, incluindo o assédio, é a mais gregária. Ela aproxima mulheres de pontos distintos do espectro político. A gente tem mulheres de direita, voluntárias nesses grupos, fazendo atendimentos incríveis.”

Para a psicanalista Ludmila Frateschi, também presente no debate, “Não Mexa Com Ela” aprofunda a discussão sobre assédio ao mostrar uma história singular, com nuances que se perdem nas estatísticas e relatos.

“Orna [a protagonista] é forte e delicada, sóbria e atraente, triste e viva ao mesmo tempo. Tem uma multiplicidade que não simplifica a personagem, o que é muito legal”, pontuou. “Quando uma história de assédio ganha repercussão na mídia, ela tende a ficar muito planificada.”

A psicanalista notou a importância da posição da câmera no filme: ela está sempre próxima à personagem principal, mas escondida atrás de janelas e portas, colocando o espectador como uma espécie de testemunha silenciosa. A fotografia, afirmou, nos confronta com os julgamentos que fazemos ao longo do filme —por que ela não reagiu? por que pediu uma carta de recomendação do chefe após o abuso?— e evidencia a solidão da personagem.

“Parecemos ser as pessoas com quem ela conta. Não tem mais ninguém.”

Frateschi supervisiona mulheres em centros de acolhimento e viu, em Orna, os sintomas clássicos do trauma (negação, irritabilidade, fixação por tomar banho) e o inconformismo comum às sobreviventes no cotidiano, de “ir dando um jeito” sem buscar reparação.

Foi por essa razão que a diretora Michal Aviad não gostou do título do filme no Brasil, que dá a entender que houve uma vingança (o título original em hebraico, “Isha Ovedet”, quer dizer algo como "Uma mulher trabalhadora").

“O risco é achar que o final do filme possa ser suficiente, como se estivesse tudo certo. O filme acaba e falamos, ‘Ufa’. Mas e aí? É quase como se a gente pudesse dizer, ‘Bem, é isso que a gente faz mesmo, se vira’.”

Presente na plateia, a infectologista Ivete Boulos, que coordena, há 18 anos, o atendimento às vítimas de violência sexual no Hospital das Clínicas, disse ter tido um dejà vu do que ouve das pacientes em diversas partes do filme.

Um exemplo foi a cena em que Orna dá a entender à mãe que algo de errado aconteceu e é prontamente ignorada; outro foi a desconfiança do marido de que ela está trocando favores sexuais com o chefe, afinal “não fez nada” ao ser estuprada.

​“O congelamento é muito comum nessas situações. Elas fixam em alguma coisa. Tem paciente que chega e diz, 'Eu só lembro do papel de parede do quarto, porque só olhei para aquilo'”, contou Boulos.

A psicanalista Luciana Saddi, que mediou o debate, associou a paralisia de Orna a dois conceitos freudianos: a filogenia (nesse caso, a ideia, condicionada pela experiência feminina com violência, de que a melhor forma de sobreviver é não reagir) e a cisão (a dissociação entre mente e corpo no momento da violação).

Saddi também citou o trabalho de Sándor Ferenczi, psicanalista húngaro pioneiro nos estudos do trauma. Ferenczi defendia que o mais traumático não era a violência em si, mas a negação da violência por quem deveria cuidar da pessoa abusada, o que aparece no filme.

Ludmila Frateschi afirmou que é preciso levar em conta a perspectiva dos homens sobre o atual momento de transição cultural, em que o assédio é visto cada vez menos como uma prática aceitável. Ela citou uma coluna recente da psicanalista Vera Iaconelli na Folha, na qual ela escreveu que "quanto mais admitimos que 'não é não', mais aumentam os casos de estupro e feminicídio".

“Dá muita raiva nos homens que as mulheres desejem, e o filme explicita isso muito bem. Se você está em uma situação de poder e te tiram esse poder, é humano que você tenha raiva. Mas é preciso ter consciência de que essa raiva está deslocada.”

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