Descrição de chapéu Textos liberados

"A civilização é só uma casquinha frágil na existência humana", diz psicanalista

Para debatedores do Ciclo de Cinema e Psicanálise, "O Poço" aponta aspectos brutais dos seres humanos diante da lógica da sobrevivência

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São Paulo

Durante todo o longa “O Poço”, do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia, o ser humano é retratado a partir da luta desenfreada pela sobrevivência e, por isso, há inúmeras cenas violentas que tornam o filme difícil de ser digerido. Esse incômodo, porém, não impediu que ele ficasse no ranking de mais vistos da Netflix por semanas, desde que foi lançado no streaming, em fevereiro.

Para a psicanalista Luciana Saddi, a identificação com o filme se dá porque a realidade atual está permeada por um medo da desordem social. “As mais absurdas fantasias sádicas são liberadas quando a gente começa a sentir esse medo. É apresentado para nós o avesso da civilização e, de certa forma, a pandemia faz com que isso seja recolocado à mesa.”

“O Poço” foi o foco do debate a distância promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo nesta terça-feira (28), com o apoio da Folha e do Museu da Imagem e do Som.

O filme retrata uma prisão de 333 andares, escavada verticalmente, na qual uma plataforma cheia de alimentos desce do andar mais alto e, a cada nível, a fartura se torna mais escassa.

“Há no ser humano uma necessidade de aniquilar o outro”, diz o psicanalista José Canelas, que explica que, dentro dos conceitos de pulsões de Freud, existe uma pulsão de vida, que tende a promover laços e ligações, mas também uma pulsão da morte que gera rupturas e destrutividade. “A violência passa a ser analisada por Freud tendo um papel essencial na resolução dos conflitos. É a partir dela que os direitos e leis podem ser criados, sendo assim possível ter um maior grau de desenvolvimento da civilização.”

Para o jornalista Leonardo Sanchez, repórter da Ilustrada, ver o filme como uma metáfora para o capitalismo, como algumas pessoas do público comentavam pelo chat da transmissão, é reducionista, tendo em vista que o debate é mais complexo do que isso. “Por mais que a gente possa fazer essa ponte, acho que o filme quer mostrar que estamos num ponto de saturação da nossa sociedade em que é difícil encontrar um caminho pacífico para a resolução dos nossos problemas.”

Canelas concorda com o repórter e reforça que “O Poço” aponta para aspectos essenciais do ser humano que aparecem quando são impostos à lógica cruel da sobrevivência. “A civilização é só uma casquinha frágil na existência humana.”

Logo no início, o filme mostra um contraste entre o protagonista Goreng (Ivan Massagué), que é um idealista e tenta resolver os conflitos pelo diálogo, e o seu companheiro de cela Trimagasi (Zorion Eguileor), que é realista e se dobra totalmente ao regime de sobrevivência.

“Goreng é o principal ator de uma luta por essa passagem da violência da força bruta à construção de um direito, regras e a possibilidade de existir uma comunidade dentro daquele local, uma vez que a comida é suficiente e são os próprios indivíduos que tornam aquilo um inferno”, diz Canelas.

O protagonista se junta ao personagem Baharat (Emilio Buale) para tentar fiscalizar os andares e garantir que todos comam apenas o necessário. Ao se deparar com a degradação dos outros indivíduos, eles próprios passam a apelar para a violência.

Indagados pelo público sobre a possibilidade de solidariedade no filme, os debatedores indicam que ela está presente em pequenos gestos de personagens. “Há uma tentativa de ser solidário, mas o sistema está tão corrompido que, por mais que tentem, não dá certo. Alguns chegam com ideais, mas ninguém está interessado neles”, diz Sanchez.

O psicanalista explica que, segundo Freud, o meio de desviar a tendência à agressividade do homem é através da pulsação de vida, que instaura laços de sentimentos nos indivíduos, por meio do amor e a identificação. Para Canelas, é preciso primeiramente ter um reconhecimento mínimo do semelhante para que a solidariedade venha como consequência. “A possibilidade de se identificar com um outro é essencial para a gente conceber uma alteridade e tolerar a diversidade dos seres humanos.”

A transmissão ao vivo alcançou um público de 925 pessoas. É possível conferir o vídeo do debate na íntegra pelo canal do MIS no YouTube.

"Contágio" será o próximo filme do Ciclo de Cinema e Psicanálise. O debate será no dia 12 de maio, às 20h.

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