A vida social nas cidades pode sobreviver ao coronavírus?

Museus e teatros funcionaram em meio a guerras, mas o período atual pede isolamento

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Michael Kimmelman
The New York Times

Está se tornando a cada hora mais difícil encontrar a nova normalidade.

Precisamos uns dos outros, em uma crise como a atual, mas tememos lugares congestionados, e com razão. França e Espanha ordenaram o fechamento de todos os bares e restaurantes. Em Nova York é a mesma coisa, com os museus e a Broadway em hiato. As mesquitas estão fechadas em diversos países, igrejas cancelaram missas, e o Papa proibiu o público de realizar celebrações de Semana Santa.

Tradicionalmente, buscamos consolo na religião, esporte, entretenimento, e na promessa de que a ciência e a sociedade modernas oferecem todas as ferramentas necessárias à solução de qualquer problema.

Mas o coronavírus solapa nossas ideias mais básicas de comunidade, e especialmente a vida urbana. Os historiadores nos informam de que as cidades emergiram milhares de anos atrás por motivos econômicos e industriais —saltos tecnológicos resultaram na produção de um excedente de bens agrícolas, o que significou que nem todo mundo precisava continuar a trabalhar na lavoura.

Mas as cidades também cresceram, embora de modo menos tangível, de profundas necessidades sociais e espirituais. A ideia mesma de ruas, habitação compartilhada e espaços públicos deriva e ao mesmo tempo fomenta uma espécie de afirmação coletiva, um senso de que as pessoas estão todas unidas.

Pandemias são inimigas implacáveis disso. São antiurbanas. Tiram vantagem do impulso de congregação dos seres humanos. E nossa resposta até o momento —o distanciamento social— não só contradiz os nossos desejos fundamentais de interagir como também contraria a maneira pela qual construímos nossas cidades e praças, metrôs e arranha-céus. Todas essas coisas foram projetadas para ocupação coletiva, e para expressar um ânimo coletivo. Para que muitos sistemas urbanos funcionem da maneira prevista, a densidade é uma necessidade, e não o inimigo.

É claro que agora dispomos de teleconferências e de uma abundância de sistemas de mídia social e outras formas de interação digital e remota. Já havíamos derivado em direção a uma forma de distanciamento social, ao dependermos cada vez mais de nossos celulares, de comunidades virtuais, de entretenimento consumido em doses maciças via Netflix.

A tecnologia que consumimos hoje na verdade cada vez mais nos consome, para o bem e para o mal. Está causando um avanço de nossas ansiedades, com acesso infinito à informação e à desinformação, indistintamente. Mas a tecnologia também está permitindo que muitos de nós levem adiante certas formas de negócio, que ajamos globalmente de maneiras que não teríamos como imaginar uma ou duas gerações atrás.

Mesmo assim, continuamos a precisar uns dos outros, e não apenas virtualmente. Ezra Klein, da Vox, mencionou a perspectiva de que o distanciamento social cause uma “recessão social”, uma espécie de “colapso do contato social, que seria especialmente dura”, ele escreveu, “para as populações mais vulneráveis diante do isolamento e da solidão —os adultos mais velhos e as pessoas com deficiências ou problemas de saúde pré-existentes”.

Existem provas que confirmam essa visão. Eric Klinenberg, sociólogo da Universidade de Nova York, escreveu um livro sobre uma onda de calor que aconteceu em Chicago em 1995, e que causou a morte de 739 pessoas. O período se provou letal para os idosos de Chicago que viviam em bairros pobres e segregados. nos quais os moradores não tinham muito contato social.

Mas na mesma Chicago, moradores mais velhos que viviam em comunidades igualmente pobres e de alta criminalidade mas tinham acesso ao que Klinenberg definiu como “infraestrutura social” —uma rede de “calçadas, lojas, instalações públicas e organizações comunitárias que colocavam as pessoas em contato com os amigos e vizinhos”— apresentaram índices de mortalidade perceptivelmente mais baixos.

Agora são essas formas de interação social que colocam as pessoas em maior risco. Esse é um dos motivos para que os nova-iorquinos afluentes que dispõem de casas de férias no campo tenham deixando a cidade nos últimos dias, como personagens medievais enfrentando a Peste Negra, no “Decameron” de Boccaccio.

Nos últimos cem anos, milhões de americanos que viviam em áreas urbanas fugiram para os subúrbios. As cidades demoliram bairros antigos e os substituíram por gigantescos conjuntos habitacionais em espaços vastos e vazios, argumentando que cortiços urbanos superlotados eram um caldo de cultura para doenças.

Mas as pessoas vêm retornando às cidades, à medida que a tecnologia cria uma infinidade de maneiras novas de conexão remota. As cidades se tornaram o epicentro de um novo capital e criatividade, porque a proximidade gera encontros acidentais e criatividade, dos quais novas ideias e oportunidades surgem.

Os economistas falaram dessa migração para as áreas urbanas em termos de dólares e dólares e centavos. Mas o valor humano do espaço compartilhado é incalculável, em última análise.

Depois dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, visitei as alas de arte islâmica do museu Metropolitan de Arte de Nova York, e havia multidões lá. As pessoas diziam que sua intenção era recordar que existe vida, beleza e tolerância, e buscar forças umas nas outras.

Durante os ataques aéreos alemães contra Londres, na Segunda Guerra Mundial, a Secretaria do Interior britânica ordenou que todos os teatros, casas de espetáculos, cinemas e outros espaços públicos fechassem as portas, forçando os residentes a ficar em casa refletindo sobre seu destino sombrio.

A exceção foi a Galeria Nacional de Londres, cujo diretor persuadiu as autoridades a permitir que ele mantivesse um quadro exposto ao público (o quadro era mudado periodicamente, para que as pessoas tivessem motivos para um retorno). A galeria também organizou uma série de concertos de música clássica realizados na hora do almoço.

Sair à rua significava arriscar a vida, ou ferimentos. Mas os londrinos formavam filas que se estendiam para fora da galeria e por toda a Trafalgar Square, à espera de vagas. Quando uma bomba alemã caiu na galeria pouco antes de um concerto, a audiência e os músicos se transferiram para a South African House, do outro lado da praça. Poucos dias mais tarde, quando uma bomba de 450 quilos que não havia explodido foi encontrada em meio a alguns escombros diante da galeria, o concerto foi transferido a uma sala distante, e ninguém deixou seu lugar quando a detonação da bomba foi forçada durante um quarteto de Beethoven.

A guerra causou um abalo na confiança das democracias livres e abertas de que sobreviveriam a uma grave ameaça mundial. Por mais modestos que os concertos tenham sido, deram esperanças aos londrinos, e os levaram a lembrar por que viviam na cidade e em companhia uns dos outros.

A ameaça atual é uma forma completamente diferente de desafio à solidariedade e à nossa maneira de viver. Não se trata de uma onda de calor ou de ataques aéreos. E não pode ser mitigada por meio de visitas a museus e salas de concerto. Ela requer isolamento.

Precisaremos descobrir uma nova abordagem, juntos.

Tradução de Paulo Migliacci

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