Epidemia barra retorno triunfal do pintor Rafael, ofuscado no Renascimento

Contemporâneo de Da Vinci e Michelangelo, artista brilharia em 2020, mas mostra com suas obras foi suspensa na Itália

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Autorretrato atribuído a Rafael, datado do começo do século 16
Autorretrato atribuído a Rafael, datado do começo do século 16 - Reprodução
São Paulo

Depois de um 2019 inteiramente dedicado a Leonardo da Vinci, era para este ser o ano de outro renascentista —Raffaello Sanzio, o Rafael, morto há exatos 500 anos, em 6 de abril de 1520. O pintor seria tema de exposições em todo o mundo, do Louvre, em Paris, ao Victoria & Albert, em Londres, passando pela Galeria Nacional de Arte de Washington.

A mais importante delas, no entanto, era “Raffaello”, na Scuderie del Quirinale, em Roma. Num esforço que custou € 3 bilhões, ou mais de R$ 15 bilhões em seguros, segundo o jornal The New York Times, a exposição reuniria, pela primeira vez, 27 pinturas de Rafael.

Nem mesmo as comemorações do aniversário de 500 anos do nascimento do artista, ocorridas há 37 anos, tinham alcançado o feito. Então, suas pinturas, muitas delas sobre madeira, foram consideradas frágeis demais para o transporte. Quem quisesse festejar a data teria que atravessar a Itália para ver trabalhos espalhados por museus em Milão, Veneza, Bolonha, Florença, Gênova, Roma.

Mas não foi desta vez que o público pôde ver as obras num mesmo espaço. “Raffaello” foi fechada dias depois de sua abertura por causa da pandemia do novo coronavírus.

Com o período de isolamento social na Itália estendido até o início do mês de maio, não se sabe quando a mostra voltará a receber visitantes.

Com isso, Rafael volta a ocupar um lugar um tanto obscuro no imaginário popular. Afinal, enquanto Leonardo da Vinci bate recordes em leilões e vende best-sellers, ele é relegado a um vago terceiro posto do Renascimento, depois ainda de Michelangelo.

Nem sempre foi assim. Em vida, e por ao menos três séculos depois, Rafael foi considerado “o pintor por excelência, o mestre a ser seguido”, afirma Jorge Coli, professor de história da arte da Universidade Estadual de Campinas.

Ele conta que, enquanto Michelangelo era considerado perigoso para os iniciantes, que poderiam ser esmagados pela sua força enquanto modelo, Da Vinci era visto como sedutor, mas misterioso, Rafael “propunha as próprias chaves da beleza”. “Quem o seguisse não seguia um indivíduo, mas um universal”, diz Coli.

“Da Vinci e Michelangelo eram admirados, mas Rafael era imitado”, resume Louis A. Waldman, professor da Universidade de Austin, no Texas, especializado em Renascimento italiano.

Ele descreve as pinturas do artista como naturalistas, tecnicamente perfeitas. Ao contrário da geração anterior a ele, porém, Rafael buscava realçar a beleza do mundo ao seu redor, e ajudou a forjar o conceito de uma arte como criação de um mundo ideal que teria repercussões pelos dois séculos seguintes.

Não é só a força dessa ideia que explica a influência de Rafael naqueles anos. Luiz Marques, também professor da Unicamp, conta que duas condições materiais contribuíram para isso. A primeira foi a ideia de Rafael de desenhar matrizes para gravuras, o que permitiu que seu estilo viajasse pela Europa por meio da imprensa.

A segunda foi o fato de que o artista foi um dos primeiros da Itália a dirigir um ateliê moderno, onde os trabalhos eram realizados ao lado de exércitos de aprendizes. Enquanto Michelangelo, aos 33 anos, iniciava, sozinho, a pintura do teto da Capela Sistina, por exemplo, o jovem de 25 anos estava ali perto, no Vaticano, pintando afrescos nos aposentos papais com muitos auxiliares.

O método fez com que Rafael tivesse que ensinar seus assistentes a reproduzir fielmente seus traços e a estrutura de suas pinturas. E, com isso, contaminasse o estilo não só dos pintores dali, numa homogeneização observada poucas vezes na história, como das gerações futuras.

É irônico, mas é essa mesma unanimidade que explica por que Rafael perdeu a força no imaginário popular com o passar dos anos. De um lado, o modelo de ateliês que ele ajudou a estabelecer entrou em crise no final do século 18, substituído pelo mito do artista romântico, do gênio individual. Daí o triunfo de Da Vinci, artista errático e sem educação formal, avesso às instituições, de um lado, e de Michelangelo, artista torturado, obsessivo, de outro.

Na mesma época, os artistas começam a negar a ideia de beleza e harmonia da qual Rafael é indissociável — “grazia”, graça, como define seu biógrafo Giorgio Vasari no século 16. “Rafael era o modelo indiscutível das escolas e academias, o mestre contra quem se revoltar”, diz Coli. “A arte preferiu a expressividade, o choque, o abalo, ao invés da sublime harmonia sutil.”

Marques concorda: “Num momento em que essa cultura do belo entra em crise, Rafael vai junto”. Mas faz uma ressalva. Se a arte trilhou outros caminhos a partir do século 19, Rafael sobrevive ainda hoje na cultura de massa. As mais de 30 madonas atribuídas a ele estão na origem dos santinhos distribuídos nas portas de igreja e lembrancinhas de primeira comunhão. “As pessoas são rafaelianas sem saber”, diz o professor.

Na visão dele, a sutileza das obras de Rafael dificulta o interesse do público leigo de hoje, acostumado a contrastes evidentes.

Marques traça um paralelo entre as pinturas do renascentista e os filmes dos anos 1940, considerados monótonos pelos mais jovens no geral. “Mudou muito o nível de oferta emocional, da violência da imagem. Se quiser que meus filhos durmam, basta um filme do Frank Capra”, ele diz.

Quem mesmo assim quiser se aventurar pela obra de Rafael, pode assistir a uma visita filmada pela exposição fechada da Scuderie del Quirinale.

Talvez a quarentena não tenha sido tão danosa ao renascentista, afinal —é possível que em casa, entediadas, as pessoas estejam mais dispostas a notar as sutilezas das imagens que ele criou.

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