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Filme 'O Poço' reflete era do coronavírus e mostra que o terror sempre foi político

Longa espanhol da Netflix gerou debate nas redes sociais com suas discussões sociais implícitas

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São Paulo

Carrinhos de supermercado carregando pilhas de alimentos e deixando prateleiras vazias. Vendedores superfaturando o preço do álcool em gel comprado às vésperas do pânico generalizado. Farmácias sem estoque de máscaras para aqueles que de fato precisam delas.

Cenas como essas se tornaram comuns em todo o mundo desde a eclosão da pandemia do novo coronavírus. E elas têm muito a dizer.

Elas falam sobre egoísmo em contraste com a solidariedade, o desespero contra a racionalidade. São temas intrínsecos à trama de um novo terror da Netflix, que chegou sem alarde à plataforma, mas que, talvez pelo momento atual, tem feito barulho nas redes sociais —as rodas de conversa em tempos de quarentena.

Por coincidência, “O Poço” estreou num cenário que põe em prática a fictícia e voraz essência de sua trama. Nela, uma prisão vertical abriga um par de detentos por andar —são dezenas e dezenas deles. Bem no meio do prédio, uma plataforma passeia todos os dias, de cima a baixo, levando comida.

Aqueles do topo têm vantagem, já que nos níveis mais baixos os presos ficam com os restos. Todos os meses eles mudam de andar, mas alguns não chegam a cumprir a totalidade de sua pena –diante da falta de alimentos, muitos recorrem ao canibalismo.

“O Poço” é a estreia do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia em longas-metragens. Mesmo com a ressonância que a trama encontrou no atual contexto de pandemia, o cineasta acredita que ela é um retrato atemporal da sociedade.

“Quando estreamos o filme no Festival de Toronto, me disseram que era o momento histórico ideal, por causa das desigualdades da sociedade, mas eu contestava dizendo que se tivéssemos estreado em qualquer outro momento, aquele também seria o ideal”, diz Gaztelu-Urrutia.

“Se, na nossa plataforma, em vez de comida, tivéssemos posto papel higiênico ou máscaras, estaríamos falando da mesma coisa, do egoísmo presente nas profundezas de nossos corações.”

O filme surgiu de um roteiro para teatro nunca encenado. Para chegar às telas, mudanças foram feitas, incluindo uma guinada à visceralidade tão presente no terror. “Se ‘O Poço’ é o reflexo da nossa sociedade, eu não podia ocultar a violência”, diz ele, lembrando cenas como aquela em que um idoso amarra o companheiro de cela e tira uma carnuda fatia de sua perna para comer.

Mas enquanto “O Poço” parece capturar o espírito de seu tempo por mero acidente —o Festival de Toronto aconteceu em setembro, muito antes de a pandemia atual apresentar seus sintomas—, os grandes títulos do cinema de terror costumam fazer isso de forma deliberada.

“Sempre fui um grande defensor do cinema de gênero, porque, escondido atrás do formato de entretenimento, há um grande potencial para transmitir mensagens”, diz o espanhol.

Pesquisador do gênero de terror no cinema, Carlos Primati concorda. “O cinema fantástico como um todo permite que uma história funcione, de maneira mais ou menos explícita, como um comentário social.”

“Você conta uma história realista, só que filiado ao sobrenatural, à ficção, a algum monstro. O filme de terror só faz sucesso, só repercute com o público, se ele trabalhar em cima dos medos que fazem sentido naquele momento”, acrescenta.

E a regra sempre esteve aí. Depois do 11 de Setembro, muitas histórias de terror retratavam o medo do estrangeiro e os perigos da xenofobia, como “A Vila”, dirigido por M. Night Shyamalan há 16 anos.

Na década de 1980, quando o republicano Ronald Reagan governava os Estados Unidos com suas políticas conservadoras, o gênero slasher, mais exagerado, reinava com seus psicopatas que matavam adolescentes sexualmente libertos. Em contrapartida, o Freddy Krueger de “A Hora do Pesadelo 2”, de 1985, é interpretado como uma metáfora para o medo da homossexualidade presente naquela década.

Em 1968, George Romero traçava um paralelo com a luta pelos direitos civis em “A Noite dos Mortos-Vivos”, com seu protagonista negro que sobrevive a hordas de zumbis só para ser morto por policiais brancos no final do longa.

E, nos distantes anos 1930, a Universal fazia sucesso com seus filmes de monstros que refletiam os traumas deixados pela quebra da Bolsa de Nova York, em 1929. O Drácula de Bela Lugosi, de 1931, nada mais é que um nobre que “abusa da classe mais baixa” e “suga a riqueza”, diz Primati.

“É um equívoco dizer que só hoje em dia o cinema de terror está falando de política. Sempre falou. Os bons filmes de terror sempre fazem você sair do cinema perturbado e, com a atual ascensão do conservadorismo, nós somos induzidos a ler essas histórias de uma maneira mais crítica”, diz.

Clássico de monstro da Universal repaginado para os dias de hoje, “O Homem Invisível”, que chegou mais cedo ao streaming por causa da Covid-19, por exemplo, fala de relacionamentos abusivos, assim como “Midsommar”. Jordan Peele abordou o racismo em “Corra!” e fez críticas à segregação social em “Nós”. “O Babadook” flerta com a depressão, enquanto “A Bruxa” fala sobre empoderamento feminino.

“Acredito que aqueles que produzem filmes de terror estão fazendo hoje tramas mais explicitamente políticas. O gênero sempre carregou mensagens, e isso porque o cinema de terror é, em seu cerne, sobre aquilo que nos assusta, o que é visto nas nossas sociedades”, diz a pesquisadora americana Dawn Keetley.

Na luta do bem contra o mal dessas tramas, escolher um lado pode dizer muita coisa sobre o espectador.

O Poço

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Antonia San Juan e Emilio Buale
  • Produção Espanha, 2019
  • Direção Galder Gaztelu-Urrutia
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