Jac Leirner apresenta primeira obra virtual apesar de detestar computadores

Depois de maços de cigarro e notas de cem cruzeiros, artista agora coleciona legendas de filmes, que já são mais de 5.000

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São Paulo

"Odeio computador", diz a artista Jac Leirner a certa altura da entrevista. A frase é engraçada, dado o motivo da conversa. Há duas semanas, ela inaugurou a sua primeira obra internética, no Aarea, plataforma de exposições virtuais que agora completa 30 encarnações.

Sem qualquer tipo de identificação –mesmo a assinatura de Leirner está escondida–, o trabalho mostra uma sequência de capturas de legendas de filmes e séries, sempre de dois em dois. Todas as legendas são relacionadas a números. Combinadas por um algoritmo, criam formulações que vão do sem sentido ao cômico –"66" e "dois pontos", lê-se num dos dípticos; "não se humilha um homem" e "é um sofá", diz outro.

Leirner conta que as imagens fazem parte de uma coleção de 5.850 fotografias de legendas, tiradas desde que ela entrou no Instagram, sete anos atrás. Só aquelas com números são mais de mil. Mas há muitas outras pastas do tipo no seu computador –com legendas com as palavras "sim" e "não", com xingamentos, com paradoxos, com duplicatas, com termos religiosos.

É um processo de acumulação obsessiva que está na base da obra da artista paulistana, uma das mais reconhecidas do país. Com trabalhos em museus como o MoMA, em Nova York, e o Tate Modern, em Londres, Leirner já exibiu maços de cigarro vazios, cartões de visitas, sacolas plásticas.

Objetos que, retirados do consumo cotidiano, alcançam potencial plástico em composições inesperadas. Notas de cem cruzeiros formam blocos maciços, ora um círculo perfeito, ora uma cobra que ziguezagueia pelo chão. Talheres roubados de aviões viram estranhas bijuterias ao serem unidos por uma corrente.

Para o projeto do Aarea, Leirner usou não objetos, mas imagens. Mesmo assim, a captura de cada uma delas exige um método específico.

A legenda é fotografada de modo a dificultar o reconhecimento da cena de que foi retirada. "Mas tenho preferências", observa a artista. "Adoro legendas que saem com mãos, gravatas, bocas, narizes."

Depois, a imagem é cortada num formato quadrado e arquivada. Um gargalo na produção, segundo Leirner, já que quase 40% das imagens que clicou ainda não foram para suas devidas pastas.

Questionada se já tinha brincado com essa desconexão antes, ela lembra um livro de artista publicado pela editora Ikrek há seis anos, "Atletas". Nele, silhuetas de esportistas colhidas de fotografias jornalísticas ao longo de duas décadas são combinadas a legendas sobre vitórias e derrotas. "São pequenos dramas, na verdade", diz.

Mas, continua Leirner, no conjunto do trabalho, ela tenta se abster ao máximo de imagens. "Eu lido com corpos, com coisas. E o virtual se distancia absolutamente da ideia de presença. Ele é ausência, é a ideia da imagem. Então nunca me pegou", afirma a paulistana.

Na contramão das tantas exposições virtuais inauguradas durante o isolamento social, ela diz que nem mesmo a ideia de plataforma online faz parte de seu vocabulário. "Estou mais para o platônico do que para o virtual."

Questionada sobre o que a levou, então, a capturar essas legendas, Leirner diz que, como tantos outros de seus trabalhos, o material se impôs. E "uma vez que isso acontece, não tem o que fazer", afirma. "Praticamente viciei em fotografar. E as frases cabem no dia a dia. Fotografo nomes de amigos e mando para eles."

"Costumo dizer que o material me escolhe. Já falei isso tantas vezes, mas é verdade. No caso desses stills, são milhares, mas com as embalagens de cigarro, foram três anos pra fumar todos os maços", diz, sobre trabalhos como o emblemático "Pulmão", em que empilha os invólucros de celofane que costumam envolver os pacotes de cigarro. "Então tenho que dar tempo ao tempo."

Mesmo com sua antipatia ao meio eletrônico, ela diz estar feliz com o trabalho no Aarea, que convida justamente artistas que nunca tiveram contato com o meio –e que, conta Lívia Benedetti, criadora do projeto ao lado Marcela Vieira, talvez tenha sido um dos poucos projetos a seguir normalmente com as atividades durante a pandemia.

Mesmo assim, o objetivo é que o trabalho um dia saia da tela e vire livro. Ou melhor, uma enciclopédia, com um tomo para cada assunto.

Enquanto a materialização não vem, resta aos admiradores da artista descobrirem mais do seu lado cinéfilo. No projeto do Aarea, ela revela, estão várias cenas de filmes do japonês Akira Kurosawa, além de "Noites de Cabíria", "Os Desajustados" e um "monte de filme de quinta".

Quase todos, ela afirma, foram capturados da televisão de casa. "Gosto muito de ir ao cinema, mas raramente consigo fotografar", diz ela. "Só se tiver na última fila sozinha, porque senão pega mal."

Jac Leirner

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