Músicos desbravam YouTube e se adaptam a regras e remuneração da internet

Com 4 das 5 maiores audiências do mundo, lives são febre no Brasil, mas artistas têm problemas com bebedeira e direitos

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São Paulo

“Não farei live para ser censurado”, tuitou Gusttavo Lima na última semana, depois de mais uma transmissão ao vivo no YouTube. O sertanejo respondia ao Conar, órgão de regulamentação publicitária, que abriu uma representação ética contra ele e sua patrocinadora cervejeira, por propaganda indevida.

Dias depois, César Menotti, dupla com Fabiano, disse que a mesma rede social havia derrubado sua live. Henrique & Juliano lamentaram que não poderiam cantar músicas de Zezé di Camargo & Luciano por causa de regras da plataforma.

Gusttavo LIma faz live e bebe muito, em 11/4/2020
Gusttavo LIma faz live e bebe muito - Reprodução

Mesmo recente, esse choque dos artistas com a regulamentação da internet não era de todo imprevisível, pela dimensão que as lives tomaram.

Em meio a uma pandemia que está deixando as pessoas em casa, os shows caseiros deixaram de ser uma maneira de aproximar artistas e fãs e se tornaram um negócio —ainda que com um caráter beneficente, já que promovem doações.

No Brasil, em especial, as lives viraram uma febre. Usando como medida a quantidade de acessos simultâneos, o país tem sete das dez maiores audiências do YouTube nas transmissões no mundo todo.

Sandy & Junior são os únicos não totalmente sertanejos na lista, mas nomes de outros gêneros também têm tido sucesso no formato, incluindo o rei Roberto Carlos, a banda emo Fresno, os pagodeiros Raça Negra, Belo e Thiaguinho, DJs de funk, como GBR, Rennan da Penha e FP do Trem Bala, e todo tipo de cantor com algum apelo popular —de Joelma, ex-Calypso, a Ludmilla, de Xand Avião a Nando Reis.

“Todos os artistas que fizeram lives, de alguma maneira, precisaram buscar as melhores práticas no início ou ao longo do processo, por ser um território novo”, afirma Guilherme Figueiredo, diretor de marketing digital da Som Livre.

Ele diz que foi a própria gravadora quem tirou do ar a live de César Menotti & Fabiano —e não o YouTube, como a dupla havia denunciado. A empresa agiu para evitar que o canal dos cantores recebesse uma punição, já que a transmissão tinha anúncios nos mesmos moldes que os da plataforma de vídeos.

três pessoas em um cômodo cantando e tocando instrumentos
Sandy & Junior, ao lado de Lucas Lima, durante live beneficente - Reprodução

“Esse caso ganhou mais visibilidade, mas todo o mercado tem conversado e buscado se adaptar de alguma maneira.”

No caso de Gusttavo Lima, o problema foi com o Conar, que abriu representação contra a publicidade de cerveja.

“A denúncia cita a falta de mecanismo de restrição de acesso ao conteúdo das lives a menores de idade e a repetida apresentação de ingestão de cerveja, em potencial estímulo ao consumo irresponsável do produto”, disse a agência.

Na prática, o problema não era que Lima tomava bebidas alcoólicas, mas sim que estimulava de modo indevido o consumo da cerveja patrocinadora. Ele depois tuitou que “uma live engessada e politicamente correta não tem graça”.

A regulamentação do Conar e os anúncios no mesmo formato do YouTube são as únicas limitações da plataforma em termos de propaganda, diz Cauã Taborda, gerente de comunicação do Google.

Ele explica que a monetização dos vídeos se dá de duas formas. Uma parte vem das assinaturas dos serviços pagos do YouTube e a outra do percentual das receitas geradas com os anúncios da plataforma.

Segundo os músicos, há outras fontes de receita. As gravadoras ou independentes têm contrato com o YouTube pelo fonograma —a música gravada—, enquanto o Ecad, que recolhe pagamentos por direitos autorais, tem outro relacionado à execução pública da canção em questão.

“Se tocasse uma música sua na live de outra pessoa, é você, detentor da propriedade intelectual, quem vai determinar o que acontece com ela”, diz Taborda. “Você pode notificar a pessoa, pode derrubar o vídeo, pode permitir o uso —para puxar monetização, já que a propriedade é sua— e pode liberar sem ganhar nada. É por isso que uma live pode ser bloqueada na hora se uma pessoa tocou uma música à qual não tem direito.”

O reconhecimento das músicas é feita por um sistema automatizado, que identifica a obra mesmo quando tocada ao vivo e em diferentes versões. É isso que possibilita o pagamento ao Ecad. A live de Henrique & Juliano, por exemplo, só seria derrubada se os representantes dos compositores de alguma música que a dupla tocasse, depois de notificados, vetassem a performance.

Mesmo que as lives musicais sejam novidade, o YouTube já é há algum tempo uma das plataformas mais usadas para se consumir música e não mudou as regras neste momento de maior exposição.

“A publicidade que roda em videoclipes representa por volta de 25% da receita de música gravada —para ser claro, estou excluindo dessa conta a receita com venda de ingresso, direitos de imagem e execução pública”, diz Figueiredo, da Som Livre. “Já a presença de marcas em lives é um novo território, que ainda não possui dados consolidados.”

Falando do dinheiro dos compositores, na comparação com shows presenciais, ele é bastante sucinto. Mario Sergio Campos, gerente de distribuição do Ecad, diz que o pagamento do YouTube referente a fevereiro, março e abril só vai acontecer em agosto. Por isso, ainda não teve acesso aos relatórios da plataforma nesta época de lives.

Mas, independentemente do alcance das lives, o valor pago pela plataforma é fixo e previsto em contrato. Isso significa que as transmissões, ainda que tenham audiências robustas, não vão gerar renda extra a compositores —quem tiver mais músicas cantadas em lives é que vai ganhar uma fatia maior desse pagamento.

Campos diz ainda que o equivalente em direitos autorais —excluindo o fonograma, pago à gravadora— por um play no YouTube é de R$ 0,00005. Ou seja, R$ 5 a cada 100 mil views.

Já num show presencial, o Ecad cobra 10% do valor de bilheteria e desconta 15% dessa porcentagem. “Para um público de mil pessoas, com ingresso a R$ 10, o faturamento é de R$ 10 mil. Então, R$ 850 iriam para pagamento dos autores”, afirma. Nessa conta, se a banda tocasse 20 músicas, cada uma delas renderia R$ 42,50.

Conforme os artistas se deparam com as regras do YouTube, um novo nicho pode se abrir. Matheus, da dupla sertaneja com Kauan, lança no mês que vem seu próprio aplicativo de lives, o Live Live Brasil.

“A gente não está aqui para concorrer com ninguém”, ele diz. “Mas acho que o artista se sente inibido quando tem um monte de regras. Estamos fazendo isso de coração, para arrecadar doações, ajudar com a nossa arte. Não queremos ser um robô na frente da tela.”

O aplicativo vai vender transmissões a R$ 4,99 cada uma e terá Gusttavo Lima como uma de suas atrações. Matheus diz que as lives terão menos patrocínios, já que parte da arrecadação vem da venda dos próprios conteúdos.

A nova plataforma também deve ser mais “maleável”, já que poderá, com mais clareza, restringir o conteúdo para maiores de idade, entre outros controles.

“Vai da educação das pessoas falar palavrão ou coisas do tipo”, ele diz. “O Conar tem direito e amplo conhecimento para notificar, mas acho que o cara está na casa dele, tomando uma latinha de boa. Temos que nos preocupar com quem está assistindo, mas temos que ser nós mesmos.”

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