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Na era do coronavírus, tem muita live para pouco olho na internet

Do profissional ao leigo, da estrela ao recluso, agora todo mundo é âncora de seu programa ao vivo

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São Paulo

Quem é ativo nas redes sociais deve entender bem uma piada que tem se espalhado por aí. “Tenho medo de abrir a geladeira e encontrar uma live lá dentro.”

É uma referência à proliferação de vídeos ao vivo nas plataformas digitais. A impressão é que quase todo mundo com uma câmera na mão —ou seja, quase todo mundo com computador ou celular— está transmitindo a própria vida aos outros, tal qual um "BBB" particular.

O Instagram e o Facebook, redes que pertencem à mesma empresa, afirmam ter de fato observado um aumento significativo nas lives. Segundo o Instagram, a audiência para esse tipo de transmissão dobrou.

A causa, claro, é a quarentena que busca mitigar a disseminação do coronavírus. O que criou uma situação inédita em que (como disse a escritora Noemi Jaffe) ao mesmo tempo você está isolado em casa, um cara em Botswana está isolado em casa e a rainha da Inglaterra está isolada em casa.

Mas Elizabeth 2ª está mais acostumada ao confinamento que a maioria das pessoas. Nos nossos palácios mais humildes, resta encontrar alternativas para fugir ao tédio, restabelecer algum contato humano e continuar a vida útil da porta para dentro.

É aí que entra a explosão das lives. E aqui vale lembrar que boa parte da programação ao vivo é de gente acostumada a ser o centro das atenções –celebridades.

Muitas dessas transmissões são ricas, é verdade. Há desde encontros luminosos como o de Lázaro Ramos, Emicida e o pastor Henrique Vieira, que conversaram ao vivo no último dia 28, até papos mais nostálgicos, como a reunião de Steve Carell e John Krasinski, o Michael e o Jim da versão americana da série “The Office”.

E mais impressionante até que as performances estrondosas, como as lives de sertanejos ou os shows de astros do pop vistos por milhões, é o fato de que o Instagram tem dado oportunidade para o aparecimento de alguns dos artistas mais reclusos do folclore mundial.

O lendário cineasta Jean-Luc Godard, aos 89 anos e absolutamente avesso a entrevistas e eventos, fez uma raríssima aparição pública —ou melhor, virtual— numa conversa na página da Universidade de Arte e Design de Lausanne no dia 7 de abril. Falou por uma hora e meia sobre seus colegas de nouvelle vague, sobre a maneira como acompanha notícias, sobre sua visão de que “o cinema é um antibiótico”.

(Vale lembrar que ele já havia feito uma espécie de live quando decidiu dar através de um iPhone, direto de casa, a entrevista coletiva sobre o filme “Imagem e Palavra” no Festival de Cannes de 2018.)

A cantora Rita Lee, bicho do mato há quase uma década, se reencontrou duas vezes com seus fãs sedentos nas últimas semanas —já que não precisou sair da toca, ela pôde ser vista na sua nova pele de vovó narradora de histórias em duas ocasiões no fim de março.

A programação mais caseira de lives ainda teve raridades como uma performance de Neil Young em seu sítio, filmado pela mulher, e uma serenata de Patti Smith ao lado da filha.

Alexandra Schwartz, jornalista da revista The New Yorker, foi certeira no resumo. “O Instagram Live, antes um lugar para celebridades oferecerem ao público um vislumbre dos seus mundos, foi reaproveitado como um cabaré.”

A programação é praticamente incomensurável, e este jornal tem reunido destaques diários sobre o que ver em casa em meio ao oceano de opções. Entrevistadores, professores, atores, médicos, todos agora são âncoras de seus próprios programas. E nada impede o leigo de ser também.

Numa noite de sexta-feira, competiam no feed do meu Instagram as lives de um ator brasileiro famoso, uma atriz britânica mais ou menos famosa e alguns conhecidos nada famosos. Enquanto as celebridades reuniam centenas de espectadores, os anônimos juntavam um grupo que poderia ser uma reunião do Google Hangouts (ou do mais moderninho Zoom).

O que leva à pergunta –se todo mundo está produzindo lives, tem tanta gente assim para assistir a elas?

O fenômeno lembra a explosão dos blogs na década passada, em que todo mundo escrevia e todo mundo era pouco lido. Isso lembra uma provocação divertida do mestre dos contos Sérgio Sant’Anna na penúltima Flip. “No Brasil, está se escrevendo demais. O Brasil tem que ter mais leitores e menos escritores", dizia o autor. Agora parece haver muito vídeo para pouco olho.

Mas há uma ânsia de contribuir, de pôr a própria vida em evidência. Não é de surpreender que parcela robusta das lives dê palco a atividades mundanas. São pessoas comuns cozinhando, cuidando da pele, fazendo ioga, dando pitacos sobre a vida, o universo e tudo mais.

É um desdobramento da ultraexposição já característica das redes sociais. Não só tenho que escancarar por foto e texto o que faço a todo momento, mas é preciso me exibir ao vivo para minha audiência (que, provável supor, está tão entediada quanto eu).

Na era da economia da atenção, as empresas de tecnologia se profissionalizaram em reter seus usuários não só os atraindo com conteúdo, mas permitindo que eles próprios criem e sejam o conteúdo.

Não é de hoje que se teoriza sobre como dispositivos e aplicativos são especificamente desenhados para prender a atenção e segurar o usuário pelo máximo de tempo possível. Tristan Harris, ex-Google, virou uma espécie de guru da chamada “slow media”, que tem como propósito ajudar as pessoas a “libertar suas mentes do sequestro promovido pela tecnologia".

Nesta hora de isolamento, em que o contato humano se restringiu à mediação pelas telas, não parece haver muita escapatória senão se render a essas redes que se especializaram em nos dar palanque. Cabe cautela em não se deixar cegar pelos holofotes.

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