Descrição de chapéu The New York Times Cinema

O coronavírus trouxe o futuro que Hollywood temia e pode afetar até o Oscar

Com o isolamento social, a perspectiva da indústria cinematográfica é sombria, em todas as estações

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Kyle Buchanan
The New York Times

A indústria do cinema já estava à beira de um precipício. Será que a pandemia representa o empurrão final?

Com salas de cinema fechadas em todo o planeta e centenas de milhões de pessoas confinadas em suas casas por ordem das autoridades, não está claro quando a indústria do cinema poderá retomar os negócios normais, e nem mesmo se o “normal” vai se parecer com aquilo que Hollywood deseja.

Peças importantes do calendário do cinema —entre as quais a temporada de produções de grande orçamento no verão do hemisfério norte e a corrida para as premiações anuais— foram desordenadas, e em sua ausência a distância entre o streaming e a experiência de assistir a um filme numa sala de cinema vai se alargar ainda mais.

Sala de cinema no shopping Frei Caneca em março de 2020 - Zanone Fraissat/Folhapress

Como a indústria do cinema vai lidar com esse desordenamento e o que acontecerá no restante de 2020 se não for possível atrair as audiências temerosas de volta às salas de exibição? A perspectiva é sombria, em todas as estações.

Verão no hemisfério norte: a temporada dos filmes de grande orçamento evapora

Se fosse possível brandir uma varinha de condão e erradicar o coronavírus, libertando todo mundo de suas casas, com certeza a temporada cinematográfica de verão que viria em seguida seria a mais lucrativa de todos os tempos.

Mas não existe varinha de condão. Uma possível vacina para o coronavírus deve demorar pelo menos um ano para chegar ao mercado, e enquanto isso não acontecer é difícil imaginar uma forma viável de as salas de cinema reabrirem as portas e apresentarem lucros regularmente.

Mesmo que surjam planos para uma limpeza completa de todas as salas de cinema entre uma sessão e a próxima, e de reduzir a audiência para que os espectadores possam manter distância segura, será que os estúdios estariam interessados em exibir seus “blockbusters” a plateias assim dizimadas?

Filmes como esses muitas vezes precisam faturar centenas de milhões de dólares para sair do vermelho, uma tarefa impossível num mundo no qual só uma pequena parcela da população poderá vê-los.

Embora a Universal tenha adiado a estreia de “Velozes e Furiosos 9”, com Vin Diesel, por quase um ano, de maio de 2020 a abril de 2021, outros estúdios vêm mostrando mais cautela para fazer mudanças em suas agendas.

A Warner Bros. ainda não anunciou a nova data de lançamento de “Tenet”, de Christopher Nolan, no momento marcada para 17 de julho e, ainda que o estúdio tenha transferido “Mulher-Maravilha 1984” para depois de sua data prevista de 5 de junho, a continuação da história da super-heroína ainda está marcada para agosto.

Os dois filmes preveem bilheterias da ordem de mais de US$ 1 bilhão, mas isso dificilmente parece realista se as pessoas continuarem desencorajadas de participar de eventos de grande público, especialmente em mercados seriamente atingidos pela epidemia, como o da China.

Mas muita gente em Hollywood decidiu adotar uma atitude de esperar para ver.

A Disney adiou as estreias de filmes marcadas para o começo do verão, como “Viúva Negra”, da Marvel, e “Soul”, da Pixar, mas a versão de Mulan com atores reais, que inicialmente seria lançada no segundo trimestre, agora tem data marcada em 24 de julho.

Será que isso acontece porque o filme se destina a uma audiência jovem, a faixa etária que até o momento se provou mais resistente ao coronavírus? Ou a Disney acredita que cada parte de seu império precisa projetar confiança a fim de atrair as pessoas de volta aos seus parques temáticos e navios de cruzeiro antes do final do terceiro trimestre?

Alguns estúdios decidiram realizar lançamentos digitais ou transferiram filmes de menor orçamento e já lançados aos serviços de streaming.

A Paramount vendeu “The Lovebirds”, comédia estrelada por Kumail Nanjiani e Issa Rae, para a Netflix, e a Universal acaba de lançar a dispendiosa comédia de animação “Trolls: World Tour”, nos serviços de streaming, por US$ 19,99, ou R$ 107,62. O estúdio se vangloriou de que o filme estabeleceu um recorde de faturamento em mídia digital, mas se recusou a divulgar números, o que ainda não permite avaliar se um lançamento lucrativo mas limitado à mídia digital conseguiria satisfazer as expectativas de faturamento de um projeto de grande orçamento.

E, embora as famílias gastem menos para ver “Trolls” em um serviço de streaming do que gastariam em ingressos em uma sala de cinema, o preço de venda ainda se compara desfavoravelmente ao de uma assinatura da Netflix nos Estados Unidos (que varia de US$ 8,99 a US$ 15,99 ao mês, ou de R$ 48,40 a R$ 86).

A gigante do streaming está muito bem posicionada para a temporada da pandemia, e seu calendário para o verão continua inalterado. A fidelidade das audiências à Netflix e a outros serviços de streaming provavelmente crescerá cada vez mais enquanto as salas de cinema continuarem fechadas.

Outono: festivais de cinema em dúvida

Os espectadores dos festivais em geral estão cansados, estressados e têm agendas movimentadas demais —o preço que eles pagam pelo privilégio de ver filmes excelentes com antecedência. E esse desgaste aumenta à medida que o festival avança. As pessoas que chegam ao final do evento sem apanhar um resfriado são poucas. Agora, estamos diante de uma ameaça muito mais grave.

É difícil imaginar como o calendário finamente calibrado dos festivais de cinema poderá ser mantido em sua forma planejada. O South by Southwest foi o primeiro grande cancelamento da pandemia, em março, e o Festival de Cinema de Cannes, inicialmente adiado, de sua data usual em maio, parece a caminho de ser o segundo, porque o presidente francês Emmanuel Macron estendeu até a metade de julho as restrições à realização de eventos com grande público em seu país.

Filmes como “The French Dispatch”, de Wes Anderson, que deveria estrear em Cannes em maio, antes de ser lançado nos cinemas algumas semanas mais tarde, já foi adiado para daqui a alguns meses. Os organizadores admitiram nesta semana que Cannes não poderá ser realizado da maneira planejada originalmente.

Mesmo que o festival seja postergado para o fim do terceiro trimestre, teria de enfrentar interferência de três grandes festivais de cinema que acontecem em setembro e dão a largada para a temporada de filmes de prestígio.

Mas será que qualquer um desses festivais vai acontecer? O Festival de Cinema de Veneza começaria no dia 2 de setembro, e embora uma estreia lá seja usualmente cobiçada, a Itália continua abalada pelo surto do coronavírus, que matou mais de 20 mil de seus cidadãos até o momento.

Um país devastado a esse ponto estará realmente preparado para organizar um glamoroso festival de cinema dentro de apenas alguns meses? E os astros e estrelas de Hollywood vão querer viajar para o evento?

Festivais subsequentes em Telluride, no estado americano de Colorado, e Toronto são considerados ainda mais importantes para o lançamento dos filmes de final de ano. Mas alguns especialistas apontaram para a probabilidade de que o coronavírus ressurja no quarto trimestre, e muita gente pode hesitar em ir mesmo que a capacidade das salas seja reduzida e medidas de proteção sejam adotadas.

E, se parecer que a temporada de premiações de 2020 está comprometida, muitos dos filmes de prestígio podem optar por ignorar completamente os festivais neste ano.

Inverno: a temporada do Oscar também vai desabar?

Este ano deveria ser leve para o Oscar, um momento para desfrutar da boa vontade gerada pela premiação ao popular “Parasita”, de Bong Joon-ho, na categoria de melhor filme.

Agora, poucos meses depois desse momento histórico para um filme sul-coreano, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas pode ser forçada a tomar uma nova decisão ousada antes de estar completamente preparada para isso. Será que filmes serão autorizados a disputar o Oscar mesmo que não tenham sido lançados em circuito comercial?

Alguns filmes exibidos por serviços de streaming atraíram atenção no Oscar depois de uma passagem mínima por salas de exibição, para cumprir o regulamento, mas a perspectiva de aceitar filmes que não tenham sido veiculados nos cinemas é uma ponte que academia jamais se dispôs a atravessar.

Depois de obter um compromisso da Netflix quanto a períodos mais longos de exibição em cinemas para os títulos que a companhia inscreve para prêmios, a academia agora pode relutar ainda mais em fazer exceções generalizadas. Se as regras forem afrouxadas, mesmo que só uma vez, será difícil colocar o gênio de volta na garrafa.

Outra possibilidade que foi mencionada foi a de estender o prazo de validade para o Oscar, de modo a que a próxima premiação abarque filmes lançados em 2020 e 2021, algo que a academia não faz desde a década de 1930.

Se os figurões da academia aceitarem essa ideia, grandes candidatos ao Oscar como “West Side Story”, que deve sair em dezembro, já serão notícia velha quando chegar a hora de os eleitores preencherem suas cédulas, e mesmo a Netflix pode se sentir tentada a adiar para 2021 filmes como “Mank”, de David Fincher, e “Hillbilly Elegy”, de Ron Howard, produções prestigiosas cotadas para prêmios.

A academia havia marcado uma reunião de conselho para esta semana, na qual essas questões deveriam certamente ser discutidas, mas ela foi adiada para 28 de abril. Enquanto isso, alguns filmes aclamados que deveriam sair nos próximos meses tiveram seus lançamentos suspensos. Até que a academia ofereça alguma orientação, os realizadores e elencos não pretendem dispensar sua elegibilidade ao Oscar em troca de um lançamento digital. A única coisa certa agora é que ainda restam muitos dominós a cair.

Tradução de Paulo Migliacci

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