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Inácio Araujo

Para cada 'Twin Peaks', há 200 abacaxis na TV durante a quarentena

Segundo crítico, confinamento em casa restrito à televisão e ao streaming pode parecer um inferno

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Minha última sessão de cinema foi estranha. “O Oficial e o Espião” tinha acabado de entrar em cartaz, era a estreia mais importante da semana, um filme de Roman Polanski, que tinha acabado de ganhar um prêmio polêmico. Mesmo assim, não havia mais de dez pessoas na sala imensa. Alguém comenta, não sem razão, que é mais difícil contrair o vírus ali do que na rua.

Ainda era março e, no fim, passei rápido pelos saguões de alguns cinemas de São Paulo. O do Belas Artes e do Espaço Augusta, normalmente animados, pareciam velórios. Não precisava ir longe para ter a sensação de que a temporada tinha acabado —o que, de fato, aconteceria logo depois.

Na calçada em frente ao bar Moela, entupida, a garotada ainda não levava muito a sério a epidemia ou aproveitava a última chance de tomar cervejas com os amigos antes de a sociabilidade ficar restrita ao WhatsApp.

Em casa, é estranho —a pilha de DVDs, separada com filmes que espero ter um tempinho para rever, de repente não me atrai. Tornou-se compulsória, deixou de ser um prazer.

estante cheia de dvds
DVDs em videolocadora no edifício Copan, no centro de São Paulo - Rubens Cavallari - 29.mar.2019/Folhapress

Em todo caso, existe o streaming, e alguém me falou de “Lost Girls”, um dos mais vistos da Netflix. Só que mais parece um daqueles telefilmes dos anos 1980. Tchau.

Carlos Alberto Mattos, colega crítico do Rio de Janeiro, recomenda a série francesa “Dix pour Cent”, vulgo “Call My Agent”. Essa é na mosca, uma deliciosa comédia de escritório. Pode até lembrar “Mad Men”, mas não se bebe e fuma em tempo integral.

Mas aí surgem os canais de TV paga. Deus, que horror.

Telecines, HBOs e outros que só exibem coisas que já vimos cem vezes ou produções que os olhos repelem à primeira cena. Esquece. As esperanças são os filmes do Arte 1 e os documentários do Curta!.

A pilha de livros está lá para salvar, mas será preciso revezar. Tenho aqui “O Fantasma de Luis Buñuel”, da Maria José Silveira, que foi uma formidável editora no tempo da Marco Zero e comprou “A Cor Púrpura” por duas mariolas e vendeu uns 100 mil exemplares.

Penso também em ligar para amigos, mas não há tempo. Confinado, parece que trabalho mais do que o normal. Preciso aprender a dar aulas sem ser presencialmente. Um aluno se propõe a me ensinar a usar o Skype, mas não sei.

E como repousar? O jeito é voltar a garimpar filmes no streaming. Tudo é cíclico na quarentena. E para cada “Twin Peaks” há 200 abacaxis ou séries para as quais não tenho paciência. Segui umas duas ou três em toda a vida. Não posso queimar “Dix pour Cent” de uma vez só.

Aos poucos, vou descobrindo o que é prisão domiciliar: é uma maneira de fazer o cara odiar a própria casa. Estou ficando ranzinza ao só ver frango no delivery. Penso em fazer um gim-tônica. Mas, se ceder a esse desejo assim de primeira, vou acabar virando alcoólatra em duas semanas.

Olho ao meu redor e já não encontro nada. Tudo está uma baderna. Cinemas fechados, a NBA parada, o futebol cancelado. Só resta a TV aberta —o inferno deve ser assim.

Lá fora, leio sobre as dificuldades de fechar todo o comércio. Sobre membros do governo que resolveram xingar os chineses a esta altura do campeonato. Ruas que seguem movimentadas. O Brasil chegou aonde tanto queria, a um governo burlesco, misto de chanchada e de terror.

Só que em momento grave, em que a Covid-19 avança com velocidade. Quem vai nos tirar dessa? Parece que estamos em um desses filmes que entopem a televisão: apertem os cintos, o piloto sumiu.

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