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Rubem Fonseca não escrevia sobre violência, mas 'sob' violência

Muito comum ouvir de alguém: 'Ferréz é fonsequiano'

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Está todo mundo me devendo.

Comida, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes.

E ai da Folha de S.Paulo se insistir em pôr os parágrafos acima em itálico ou entre aspas.

Sei que são trechos do clássico conto "O Cobrador" de Rubem Fonseca. Mas sou eu quem está falando. Sou eu quem está cobrando, tá ligado?

Vai fazer falta essa violência de Rubem Fonseca. Aliás, chega de dizer que ele escrevia sobre violência. Escrevia “sob” violência, está me entendendo?

Ele influenciou até quem não foi influenciado por ele. O meu caso. A minha secura nos parágrafos, apontada por alguns críticos, vem do fato de eu ser sertanejo. De eu ter lido primeiro Graciliano Ramos, creio.

Mas quem disse que isso importa? O problema é meu.

Um grande escritor é aquele que joga uma sombra na produção de quem veio durante, antes, só depois.

Muito comum ouvir de alguém "Ferréz é fonsequiano"​. Idem Marçal Aquino. Geovani Martins fonsequiano. Jorge Ialanji Filholini, Paulo Lins. E você também. Ou vai dizer que não?

Mas também sou João Antônio, porra!

Agora mesmo, na semana passada, morreu o escritor Luiz Alberto Mendes. Morreram umas frases minhas com ele. Com Luiz eu conversava sobre a crueldade, a desumanidade, a tortura. Quando saiu do Carandiru, onde esteve preso por muitos anos, Mendes falou das dores que sentia nos ossos, “todos entrevados”. Sobre a vista, “acinzentada”. Sobre o vocabulário, “que ficou mofado atrás das grades”.

Será que quando um cara vai escrever sobre um detento, em seu primeiro dia de liberdade, pensará nos ossos, nas vistas, nos verbos usados por esse cara? No geral o mau escritor cria a cena do ex-presidiário, à frente da casa de detenção, olhando demoradamente para o céu azul e, ao final, suspirando. Não é verdade, não é verdade.

O parágrafo acima é todo de Luiz Alberto Mendes. Porém, a técnica literária passou a ser minha também.

O que tem a ver esse papo com Rubem Fonseca?

Tudo, camarada.

Rubem se apossava do corpo do personagem. “O Cobrador”, para ficar no famoso exemplo, é munição pesada. É um ouvido que escuta. Um ritmo de grosso calibre.

Me irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha. Tão me devendo colégio, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela, sorvete.

Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio.

Palavras de Rubem, mais uma vez. Não precisa de itálico, já avisei. São minhas as palavras.

Em dias de pandemia então...

Sei que estou munido de paciência. Mas não é fácil. E aqui não é apologia do tipo de ódio que nossos inimigos de hoje gostam. É o ódio-sobrevivência, o ódio-revolta, o ódio-enfrentamento. É denúncia, grito legítimo.

A morte do muambeiro da Cruzada nem foi noticiada. A morte do bacana do Mercedes vestido de tenista foi.

O nosso personagem, o cobrador de Rubem Fonseca, lê os jornais todo dia.

Entendi quando finalmente o li. O jeito "black bloc", punk fonsequiano, de estar nas páginas. A fúria. A vingança que não tardará. Eu sempre vivo dizendo "escrevo para me vingar". Diversas vezes o meu lado cangaceiro conversou com o lado justiceiro desse velho mineiro que, dos oito aos 94 anos de idade, conseguiu sobreviver no Rio de Janeiro.

Grupo de risco o caralho!

Leio os jornais para saber o que eles estão comendo, bebendo e fazendo. Quero viver muito para ter tempo de matar todos eles.

Deixa comigo, Zé Rubem.

Deixa com a gente agora, parceiro.

Marcelino Freire, 53, é escritor. Escreveu, entre outros, “Contos Negreiros” (editora Record) e “Angu de Sangue” (Ateliê Editorial)

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