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Série da Globo tenta adaptar retrato de um mulherengo ao feminismo de hoje

'Todas as Mulheres do Mundo' é baseada na obra do cineasta Domingos Oliveira, morto no ano passado

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São Paulo

“Se você tivesse que escolher uma mulher para esposa, que critério usaria na escolha?”, perguntam ao romântico protagonista vivido por Paulo José no filme “Todas as Mulheres do Mundo”, de 1966. “O difícil não é escolher uma. É desistir de todas as outras”, responde ele.

A cena resume boa parte da teoria por trás do longa de Domingos Oliveira, agora adaptada para uma série homônima que estreia no Globoplay nesta quinta (23).

O novo seriado é um caldeirão de referências do diretor e dramaturgo carioca, morto no ano passado, aos 82, misturando argumentos de vários de seus roteiros, peças e escritos inéditos. Mas o esqueleto principal é o do filme considerado a maior obra dele.

O fio condutor são os múltiplos amores do mesmo Paulo —agora na pele de Emílio Dantas—, que a cada episódio se apaixona por uma mulher diferente, de um elenco com atrizes afiadas como Martha Nowill, Lilia Cabral, Maria Ribeiro e Fernanda Torres (estas, amigas fiéis do cineasta morto há um ano).

Uma sinopse dessas já deixa claro um desafio da produção —dá para pensar uma série com uma estrutura assim, sobre o deslumbramento de um homem por um leque de mulheres, no mundo mais feminista em que vivemos hoje?

Para começar a responder isso, a equipe da série é unânime em rejeitar qualquer adjetivo como “mulherengo” para designar Paulo.

“Ele é um apaixonado, não um dom-juan. O Paulo realmente se envolve”, afirma Sophie Charlotte, que interpreta Maria Alice, a principal paixão do protagonista e o grande papel feminino do filme de 1966.

A personagem, aliás, foi interpretada daquela vez por Leila Diniz, ícone da libertação feminina e mulher de Oliveira naqueles anos 1960. O cineasta costumava sempre criar alter egos dele próprio em seus filmes, e a cena em que Maria Alice é apresentada ao protagonista, no piloto, se inspira no primeiro encontro de Diniz e Oliveira na vida real.

A história não quer retratar a “conquista pela conquista”, continua Charlotte, para quem Leila Diniz ocupa espaço de ídolo. “Não é a mulher como troféu. É uma reverência à mulher, um encantamento pela mulher.” Ou, nas palavras do roteirista Jorge Furtado, “ele é um conquistado, não um conquistador”.

É uma leitura nuançada de um personagem, de fato, mais complexo do que um mero garanhão de gibi —muito disso mérito, no filme, de um Paulo José entregue de corpo e alma ao papel. Se Paulo afirma, em uma festa rodeado de mulheres, que “o dom-juanismo é um sentimento cristão”, ele ainda sofre as dores do encantamento por Maria Alice.

Segundo Furtado, que comandou a adaptação com “reverência e desrespeito” por Oliveira, pouquíssimo foi mexido no texto de mais de 50 anos atrás. “O mundo deu uma volta, e você vê que aquilo ainda é muito moderno nas relações afetivas. Era moderno para a época, e o mundo ficou tão careta que ficou moderno de novo.”

“A série é totalmente feminista, em todos os sentidos”, diz o roteirista, louvando o trabalho da diretora artística Patrícia Pedrosa. “Não é à toa que Domingos foi casado com a Leila Diniz. Ele tinha uma relação muito segura com as mulheres. O machista é inseguro, por isso tem que se afirmar, e os personagens dele não são assim.”

A atriz Priscilla Rozenbaum, que foi casada com Oliveira por 38 anos, até a morte dele, diz que ficou de fato preocupada com a recepção do enredo num primeiro momento. Mas foi passando conforme ela teve contato com o projeto —com o qual colaborou cedendo inéditos do marido.

Segundo ela, Paulo é um homem que se apaixona, a figura sobre a qual mais interessava ao autor escrever. “Essa paixão podia ser por mulher, podia ser por homem. Domingos só não escreveu sobre nenhum homossexual porque falava muito da vivência dele próprio.”

“Meu pai dizia sempre uma frase: se você for fundo no seu umbigo, encontra a humanidade inteira”, conta a atriz Maria Mariana, filha única do diretor, que, assim como Rozenbaum, tem um pequeno papel na série. “Ele fez a mesma coisa a vida toda, só falou de amor.”

Oliveira acabou tendo uma trajetória única no cinema brasileiro, por não adotar um tom político, de cenho franzido, numa época em que cineastas eram marcados por forte engajamento sob a ditadura militar. Diante dos filmes do cinema novo, a arte dele acabou passando injustamente por alienada, para parte da crítica.

Agora a obra de Oliveira volta a oferecer um pouco de respiro em meio a uma conjuntura política e sanitária aterradora. São 12 episódios que apresentam seu trabalho ao estilo do que os anos 1990 fizeram com “A Comédia da Vida Privada”, de Luís Fernando Veríssimo, e “A Vida Como Ela É”, de Nelson Rodrigues.

A Globo até adiantou a estreia para o meio da quarentena —o primeiro episódio passa na TV aberta também, nesta quinta—, permitindo o contato do público, em meio a tanta notícia, com um pouco de conteúdo despretensioso. Furtado rebate o repórter, porém, quando ele usa esse termo. “Eu acho que 'Todas as Mulheres do Mundo' é extremamente pretensioso. Porque leva poesia, filosofia, delicadeza para a TV."

Todas as Mulheres do Mundo

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