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Último livro de Rubem Fonseca tem marcas de seus mais famosos

Basta boa vontade para entrever verve caudalosa do início de sua carreira entre os cadáveres e palavrões de agora

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Mateus Baldi

Carne Crua

  • Autoria Rubem Fonseca
  • Editora Nova Fronteira (144 págs.)

Há dois anos, Rubem Fonseca, morto nesta quarta (15) aos 94 anos, publicou seu último livro. Escrito com a habitual fúria, "Carne Crua" foi lançado sem muito alarde –talvez numa resposta da editora aos inúmeros detratores que o escorraçavam por, aos 93 anos, não ser mais o Rubem Fonseca de "O Cobrador".

O que muitos não perceberam é que Rubem Fonseca parecia voltado ao aqui e agora. Cada vez mais compactos e diretos, às favas com o preciosismo das narrativas dos tempos de "Lúcia McCartney", seus contos recentes pareciam imbuídos de um espírito "ready-made", totalmente adequados à lógica dos nossos tempos.

O que estava em jogo era uma produção fonsequiana feita para um zeitgeist que já não tinha muito a ver com aquele dos anos 1960 e 1970, quando era necessário refundar a literatura brasileira urbana, numa reconstrução que encontrava esteio na clássica frase de "Intestino Grosso", último conto de "Feliz Ano Novo" –“não dá mais pra Diadorim”.

"Carne Crua", como última instância de uma bibliografia incontornável, não foge a essa percepção. Seus 26 contos se equilibram na fronteira do pastiche e da análise sociopolítica.

fotografia em que rosto de mulher é embalado em plástico
Capa de 'Carne Crua', último livro lançado pelo escritor Rubem Fonseca - Reprodução

Prova disso é o conto "Oropa", em que até o WhatsApp entra na jogada. "Hoje ninguém lê livros, todo mundo tem coisas melhores e mais fáceis para fazer, ver televisão, andar de carro, cheirar cocaína, fumar maconha, tomar uísque, falar no celular, mandar mensagens no WhatsApp, foder —foder não, ninguém mais fode, quem quer ter filho faz inseminação artificial. Foder saiu de moda."

Se vale de algo aos detratores, o bom-humor permanecia. Os defeitos, obviamente, existem. Afinal, trata-se de um dos maiores autores brasileiros cronicando uma sociedade defeituosa do alto de suas nove décadas de existência. Seria injusto –e ingênuo– esperar que este Rubem Fonseca dos anos 2010 mantivesse a verve caudalosa. Basta, no entanto, um pouco de boa vontade para percebê-la entre os cadáveres empilhados e a profusão de palavrões.

O conto "Feitiço Brasileiro", um dos melhores de "Carne Crua", nos leva a um terreiro de macumba para acompanhar o protagonista, um sujeito que despreza as religiões de matriz africana e acredita em saci-pererê. Dessa tensão nasce o território perfeito para Rubem Fonseca –em meio às declarações racistas dos personagens, suas descrições dos rituais deixam entrever a beleza que o próprio autor via no candomblé.

Essa dinâmica do dito pelo não dito de Fonseca, que se deixar entrever só pelo texto, já que ele negava entrevistas, poderia muito bem ser um viés de interpretação de sua obra.

É assim com o advogado Mandrake narrando a desconstrução do Mangue na abertura de "A Grande Arte", ou então com as pastilhas que o Mattos de "Agosto" ingere. Ou ainda o conto "Intestino Grosso" inteiro, como uma resposta antecipada aos que censurariam "Feliz Ano Novo" por considerá-lo imoral.

O último livro de Rubem Fonseca não é o seu melhor, mas é justamente nele que ainda se reafirma o compromisso de ser um escritor preocupado em olhar o mundo à sua volta e decodificá-lo pelos filtros possíveis.

Essa perspectiva havia ficado clara em "Calibre 22", de 2017, cujos contos tinham o preconceito como fio condutor e preparavam o terreno para a última aventura de Mandrake, no conto-título.

Se até sua morte, aos 94 anos, ele se consolidou como o grande autor brasileiro a ser superado, isso diz mais sobre seu caráter incontornável do que sobre quem insistia em dá-lo como batido –o que não está nem perto de acontecer.

Mateus Baldi
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