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Zumbis e doenças do cinema escancaram medo de que sociedade entre em colapso

Doenças da ficção causaram cenários apocalípticos muito mais assustadores do que o visto com a Covid-19

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São Paulo

Cegueira, infertilidade, perda dos sentidos e pensamentos suicidas. Esses são sintomas de doenças criadas pela ficção e que deram origem, nas telonas, a epidemias de escala ainda mais assustadora que a Covid-19.

Muito além de febre, tosse e dificuldade para respirar, as enfermidades que guiam as tramas de “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Filhos da Esperança”, “Sentidos do Amor” e “Fim dos Tempos” são muito mais violentas e inspiram consequências de nível apocalíptico.

Elas divergem, e muito, do que o mundo está vivendo com a atual pandemia de coronavírus. Mas uma coisa aproxima ficção e realidade: em ambos os casos, as doenças podem ter consequências fatais, com poder de transformar profundamente o mundo.

É justamente a disrupção do status quo que torna o subgênero de apocalipse tão atraente. Prova disso é a infindável popularidade dos filmes de zumbi, que se arrasta há décadas, desde o pioneiro "Zumbi, A Legião dos Mortos", de 1932, que recorria à magia, até o clássico "A Noite dos Mortos-Vivos", de 1968, que nunca explicou muito bem as causas para a zumbificação.

Atualmente, muitos dos grandes sucessos sobre mortos-vivos deixaram de se concentrar na macabra ressurreição de cadáveres para encontrar origens científicas e virais na transformação de humanos em zumbis —é o caso dos bem-sucedidos “Invasão Zumbi”, sul-coreano, e “Guerra Mundial Z”, hollywoodiano.

Ao retratar sociedades à beira do colapso causado pelo desconhecido, o cinema desperta os medos mais íntimos das pessoas. E a causa maior para o pânico pode nem estar relacionada à possibilidade de virar um monstrengo em frangalhos, mas sim à de ver seu estilo de vida posto em risco.

“Filmes de zumbi falam sobre medos muito primitivos, sobre morte, infecção e doença, e eles abordam a repentina e terrível destruição do corpo e da mente”, diz Johan Höglund, professor sueco da Universidade de Lineu e autor de “Eat the Rich: Pandemic Horror Cinema”, dissertação sobre a política por trás do cinema de pandemia.

“Esses filmes também são sobre pobreza, guerra e a porosidade de diversas barreiras criadas para manter as pessoas longe do perigo. Por isso, há algo neles para todo mundo sentir medo”, explica.

Höglund também percebe uma mudança no terror de zumbi contemporâneo. De acordo com o acadêmico, essas narrativas estão cada vez mais interessadas em abordar como a pobreza, o terrorismo e até mesmo as crises de refugiados podem “perturbar a ordem mundial atual e causar o colapso do capitalismo neoliberal”.

Em determinada cena de “Guerra Mundial Z”, o personagem de Brad Pitt está em Jerusalém, cidade que conseguiu evitar uma infestação local de zumbis graças às suas imponentes muralhas. Mas a tranquilidade é quebrada quando os mortos-vivos, em um ótimo trabalho em equipe, acham uma maneira de escalar as paredes e entrar no local. “Cenas desse filme, em que hordas de zumbis agressivos, de pele escura, escalam muros de cidades, falam claramente sobre o medo do refugiado.”

Mas esse tipo de colapso não está restrito às narrativas zumbis. As pandemias mais fantasiosas já citadas também lidam com questões semelhantes. E até mesmo longas realistas se deparam com impasses semelhantes no meio de suas tramas.

Em determinada cena de “Contágio”, filme Steven Soderbergh que tem sido um dos mais assistidos do streaming desde o começo da pandemia de coronavírus, americanos fazem fila em um pátio onde caminhões do Exército distribuem comida. Quando um soldado informa que os suprimentos acabaram, todos disparam em direção aos veículos, arrancando alimentos das mãos de quem já havia pego sua cota e partindo para a violência.

“Filmes como ‘Contágio’ e ‘Epidemia’ certamente são mais realistas do que os de zumbi, e parecem mais interessados na doença em si. Mas seria mais correto dizer que eles buscam explorar as consequências que uma pandemia pode ter na sociedade moderna”, diz Höglund. “Como as pessoas vão reagir quando forem privadas dos confortos e do sistema de apoio que elas tomaram como garantidos?”

É justamente por lidar sutil e indiretamente com assuntos onipresentes nas discussões políticas de países ricos que esse tipo de filme costuma ser produzido em locais como Japão, Coreia do Sul e Reino Unido, além, claro, de Estados Unidos, com sua potente indústria cinematográfica. São nações com classes médias prósperas e privilegiadas, assombradas por ameaças vindas de crises não só sanitárias, mas das mais variadas ordens.

A diferença entre “Contágio” e tramas de zumbi é o tempo que leva até que a situação evolua para o caos deliberado e universal. O longa de Soderbergh passa 106 minutos mostrando a ruína da sociedade contemporânea, enquanto o remake de “Madrugada dos Mortos”, dirigido por Zack Snyder em 2004, resolve esse problema em sua abertura de poucos minutos.

“Contágio” também aponta para uma possibilidade de cura e de reconstrução da sociedade, indo na contramão dos longas de zumbi e de outros filmes de pandemia, como “Sentidos do Amor” ou até mesmo “Planeta dos Macacos: A Origem”, que tem no cerne de seus problemas a gripe símia, responsável por dizimar boa parte da humanidade.

No mundo real, o apocalipse está longe de acontecer, apesar dos efeitos brutais do novo coronavírus e seus impactos econômicos. Medidas preventivas tentam frear o avanço da doença já com a esperança de que, em breve, tratamentos e vacinas estancarão os sintomas dessa crise —que tem sim proporções avassaladoras, mas não deixará a Terra à mercê de chimpanzés superinteligentes ou de monstrengos decrépitos.​

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