Descrição de chapéu Livros

Confira trecho do novo livro de Tati Bernardi, 'Você Nunca Mais Vai Ficar Sozinha'

Contei de quando a Tia Perseguida me chamou pra ver o formato do cocô dela?

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Contei de quando a Tia Perseguida me chamou pra ver o formato do cocô dela? Ela chorava e falava: “Não parece um caranguejo?”. Não, tia! “Parece sim! Isso é um sinal! Caranguejo é câncer no zodíaco! Será que tenho câncer de intestino?”

Aos 25 anos ela era uma moça muito bonita e tinha vários namorados. Anotava num bloquinho, que deixava ao lado do telefone, a desculpa que era para dar a cada um deles, quando ligassem. Meu avô se atrapalhava e ela ficava puta. A gente achava aquilo tão moderno, tão feminista, tão descolado. Mas já era a doença. Certa feita ela aceitou o pedido de casamento de todos e, quando estava tudo pronto, ela casou com o mais estúpido deles “porque tinha o corpo mais forte” e achou educado convidar os outros pretendentes para o casamento. Assim que nasceu sua filha, ao vê-la em seus braços, ficou possessa porque era a cara do pai: “Vou ter que ter outra para parecer comigo, não dá pra ter uma filha com a cara desse idiota”.

Minha mãe e minhas tias nasceram no Belenzinho, em uma rua chamada rua dos Gloriosos. Acho incrível como, às vezes, um nome pode servir como uma ironia ambulante a encalçar toda a vida de uma pessoa. Por exemplo, a menina mais feia da minha escola era a Bela. A mais maluca e pilhada, a Serena. O meu namorado mais brocha obviamente vinha da família Hirto. E por aí vai.

Na rua dos Gloriosos, todo mundo era o que chamávamos de “não deu em nada”. Igual minha avó dizia sobre as filhas e sobre mim: “Ninguém dessa família vai vingar”. Elas viviam falando de um vizinho que era fiscal da prefeitura, chamavam ele de “gênio da propina”, dono de vários terrenos na praia, que morou com a mãe numa casa caindo aos pedaços até os 64 anos, e então morreu (antes da mãe) sem nunca ter ido à praia.

Contavam também do Poli, um garoto bem burro que, misteriosamente, conseguiu entrar na Escola Politécnica da USP, a Poli. Logo depois da universidade começou a beber, parou de fazer a barba e não fez mais nadinha da vida. Nunca trabalhou como engenheiro. Nunca trabalhou com nada. Até que um dia virou o Gole.

Tinha a Sâmia, herdeira do maior supermercado do bairro, que passou a vida trabalhando de caixa, tamanho medo de ser roubada. Guardou no quartinho de empregada da sua casa cada centavo que ganhou. Convertido em dólar, claro! Nunca namorou. Não acreditava no amor nem nos bancos. Morreu de infarto e os irmãos foram primeiro ao quartinho contar a grana e depois acudir o corpo dela caído no chão do seu quarto.

Daí a coisa descambava para o Rabisco, filho de um vereador conhecido do bairro. O cara fez até mestrado nos Estados Unidos, mas virou vendedor de maconha e cocaína em porta de escola pública, levou tiro na cabeça, ficou lelé e acabou um wannabe de pichador, conhecido por rabiscar a parede da casa de todos os adolescentes que ficaram devendo grana de droga pra ele.

A casa da frente da casa dos meus avós era de uma família bastante excêntrica que resolveu construir um castelo com elevador panorâmico e aquelas sacadas redondinhas como se a Evita Perón fosse cantar de lá, imitando a Madonna imitando a Evita Perón.

A rua dos Gloriosos contava ainda com o que minhas tias apelidaram de Tchambolão. Um cara bem alto e bem bobo que, segundo elas, tentava transar com todo mundo. Ele andava pela rua gritando “Marcelinhooooo”, que era o nome do irmão dele, de cinco anos. O Tchambolão tinha uns 30.

Minha mãe gosta de explicar assim: “A pessoa com retardo é sempre muito taradona”. Morriam de medo que eu saísse na rua e o Tchambolão me pegasse. “Cuidado com o Tchambolão” foi a frase que mais ouvi na infância e depois durante a adolescência. Nunca vi o Tchambolão com nenhuma mulher e nunca soube de ele ficar dando em cima de mulher. Até hoje ele só é visto gritando “Marcelinhoooo!!!”. Talvez essa seja mais uma das lendas que minhas tias e minha mãe gostavam de inventar.

A rua dos Gloriosos também tinha a Chocolate, uma garota bem boazinha que menstruou pela primeira vez, aos 11 anos, na escola, e ao apontarem a sujeira em sua calça ela cheirou e falou “é chocolate”. A rua toda ficou sabendo e minha família riu disso por muitos anos [...] Algumas pessoas também a chamavam de “A Fantástica Fábrica de Chocolate”. Dez anos depois, quando ela engravidou de um cara todo cheio de espinhas, falaram que era o cruzamento da Chocolate com o Chokito e que nasceria o Lollo.

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