Debatedores apontam burocracia como entidade soberana repressora de individualidades

"Eu, Daniel Blake" foi debatido no Ciclo de Cinema e Psicanálise nesta terça-feira (26)

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São Paulo

Em 2016, a economia da Europa começava a ressurgir após um período de estagnação resultado da crise internacional de 2008. O cenário apontava uma dificuldade dos países em retomar a atividade econômica, o que trazia muita ansiedade para a população desempregada.

Medidas nesse momento visavam cortes de gastos e atingiam políticas de bem-estar social, como o seguro-desemprego e as aposentadorias. Isso resultou numa forte pressão dos governos para fiscalização e análise de quem estava recebendo os benefícios. Essa restrição é o principal foco da trama de “Eu, Daniel Blake”, do diretor inglês Ken Loach.

O longa acompanha o carpinteiro Daniel Blake (Dave Johns) que, após sofrer um ataque cardíaco, tenta solicitar auxílio financeiro do governo e acaba batendo de frente com a burocracia estatal, se vendo impotente diante de métodos impessoais e atendentes eletrônicos.

Para a psicanalista Luciana Saddi, mediadora do Ciclo de Cinema e Psicanálise que ocorreu nesta terça-feira (26), o filme é uma epopeia ao avesso. A trama não traz grandes feitos ou eventos memoráveis que despertam admiração ou surpresa do espectador. “Não há grandiosidade em lutar com a burocracia, nem é possível vencer essa entidade soberana, invisível e abstrata.”

Ela aponta que o filme mostra o império da imagem e da virtualidade, que fez com que os homens perdessem a densidade ontológica e a voz. “O que está em jogo não é o cinismo do sistema apenas, é a impossibilidade de funcionar para atender as necessidades dos homens, que se transformaram em abstrações, em algoritmos.”

Em seus filmes, o cineasta Ken Loach se empenha em mostrar os efeitos do sistema social sobre os indivíduos e, consequentemente, suas reações e lutas pela sobrevivência. “Eu, Daniel Blake” foi lançado às vésperas do referendo do Brexit, que ocorreu em junho de 2016, e retrata, segundo o repórter especial da Folha Ricardo Balthazar, uma população que ansiava pelo crescimento econômico e a oferta de empregos, mas se viu impactada pelo novo cenário do mundo do trabalho, integrado de forma mundial e altamente competitivo.

A partir da denúncia de Daniel Blake, que expôs a precarização da classe trabalhadora britânica diante de um Estado mecanizado e ausente na assistência e proteção de seus cidadãos, a psicanalista Edoarda Paron aponta, a partir da visão de Sigmund Freud, a existência de um conflito entre o indivíduo isolado e a comunidade na qual ele vive.

“Nossa condição humana tem que negociar um conflito permanente entre forças internas para construir uma subjetividade e forças externas com seus códigos morais que tentam normatizar e padronizar condutas através das leis e do poder.” Segundo Paron, os regulamentos e instituições são uma tentativa de proteção da civilização contra as demandas pessoais dos indivíduos. Balthazar também reforça isso em relação ao preenchimento de formulários logo no início do filme, que são coercitivos e não dão alternativas para o cidadão.

Ao longo de todo o filme, Blake tenta fazer sua voz ressoar frente a um sistema opressivo. Daniel vem de um mundo com vínculos humanos e fica indignado pelo modo como Katie (Hayley Squires) é destratada no departamento de serviço social. Sua manifestação em favor dela, diante da imparcialidade de todos ali presentes, é logo reprimida pelos policiais. “É como se Daniel Blake representasse uma integridade em risco em que, paradoxalmente, ele é visto como perigoso por ameaçar a ordem desse novo sistema social”, diz Paron.

Os debatedores entram em consenso em relação ao vínculo e a solidariedade criada após o encontro de Blake com Katie. Para Saddi, essa amizade diminui a sensação de desamparo e de inutilidade que o carpinteiro carregava até então. “Relacionamentos plenos de afeto passam a ser fundamentais quando a gente se sente esmagado pela brutalidade do Estado ou devorado por qualquer sistema burocrático.”

Balthazar comenta que, em geral, os filmes de Loach apontam a comunhão de valores da classe trabalhadora como a força que as personagens precisam para tocar adiante. “Essas pessoas não contam mais com o governo nem com o sistema econômico que não as reconhece, mas contam com uma comunidade de gente que está na batalha como elas.”

O público, que participou pelo chat e contabilizou mais de 200 pessoas, questionou também como a falta de escuta leva Daniel Blake ao desespero e a uma destrutividade implacável.

Paron defende que a falta de um interlocutor insere Blake em uma grande solidão. O desespero do protagonista vem de um desmantelamento de um mundo que fazia sentido para ele.

“Há uma pasteurização das massas, todos vão ficando iguais e não se pode discutir as questões. Essa homogeneização tira o que as pessoas têm de mais subjetivo. A peça de resistência é poder encontrar alguém para dialogar”, conclui Paron.

O debate pode ser conferido na íntegra pelo canal do MIS no YouTube.

O Ciclo de Cinema e Psicanálise é promovido quinzenalmente pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com o apoio da Folha e do Museu da Imagem e do Som. O próximo debate ocorre no dia 9 de junho, às 20h, e será sobre o filme “Negação”, de Mick Jackson. A transmissão também será feita pelo canal do MIS.

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