Estudos mostram que até a tela 'O Grito' precisa da quarentena para sobreviver

Pesquisa aponta que umidade e respiração humana são causas de desbotamento da pintura de Edvard Munch

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Visitantes veem quadro 'O Grito', de Edvard Munch

Visitantes veem quadro 'O Grito', de Edvard Munch Hans Klaus Techt/AFP

Bruxelas

“O Grito”, quadro do pintor norueguês Edvard Munch, também precisa de distanciamento físico como o imposto pela pandemia do novo coronavírus. É o que indicam cientistas que passaram três anos investigando a perda de brilho e de intensidade da tinta amarela usada na versão do Museu Munch, em Oslo, pintada em 1910.

Um clássico do expressionismo que se tornou símbolo involuntário da angústia que vivemos em tempos de isolamento, a obra, como os humanos nesta pandemia, também põe sua saúde em risco se for exposta a aglomerações.

Uma das hipóteses iniciais dos cientistas é que a luz estivesse desbotando o quadro. Mas, depois de mapear a superfície com equipamentos especiais, analisar tubos de tintas do pintor norueguês e submeter simulações de suas misturas a diferentes condições de luz e umidade, os 18 pesquisadores de sete países –Noruega, Itália, Estados Unidos, Bélgica, França, Alemanha e Brasil– descobriram um fator mais importante.

Nas faixas amarelas do pôr-do-sol, no pescoço do homem que grita e na massa espessa do lago, Munch usou uma tinta com pigmentos impuros, que, sob umidade, como a exalada pela respiração humana, sofre transformações químicas e pode descamar.

“Ter multidões de pessoas por longos períodos de tempo na mesma sala do trabalho não é, de fato, uma boa ideia, e o distanciamento social é perfeito para esta pintura”, diz à repórter a especialista americana em análise científica de obras de arte Jennifer Mass, que participou da investigação.

'O Grito', obra que foi roubada em 2004 e recuperada anos depois, sofre processo de deteriorização
'O Grito', obra que foi roubada em 2004 e recuperada anos depois, sofre processo de deteriorização - AFP

Além de umidade, as pessoas exalam cloretos quando respiram, segundo Koen Janssens, professor de física da Universidade de Antuérpia, também integrante da pesquisa. “Para pinturas em geral, não é saudável estar muito perto da respiração humana.”

Pelo Museu Munch passam 250 mil visitantes por ano, mas “O Grito” foi exposto poucas vezes desde 2006, quando voltou para casa depois de ter sido roubado por dois mascarados em plena luz do dia, em agosto de 2004.

Recuperada há 14 anos, a pintura tinha manchas escuras de água visíveis no canto inferior esquerdo, e, para evitar mais desgastes, ficou armazenada sob baixa iluminação, temperatura de 18º C e umidade relativa de 50%.

Depois do resultado das pesquisas, ela deve ganhar instalações ainda mais secas, de no máximo 45% de umidade relativa, segundo Irina Sandu, cientista de conservação do museu, que inaugura um novo edifício no segundo semestre deste ano.

Tintas instáveis como a usada por Munch eram comuns no fim do século 19 e no começo do 20, porque sua durabilidade não havia sido testada. A fabricação era experimental, impulsionada pela descoberta de pigmentos sintéticos que permitiam paletas muito mais vibrantes do que as das tintas de então —feitas à base de minerais moídos ou corantes extraídos de plantas e insetos.

Detalhe de danos na trela 'O Grito', após obra ter sido recuperada de um roubo
Detalhe de danos na trela 'O Grito', após obra ter sido recuperada de um roubo - Cornelius Poppe/Scanpix/Reuters

Populares entre artistas modernistas, pós-impressionistas e expressionistas, as cores contrastantes, saturadas e com variações de brilho na superfície eram perfeitas para a cena que o pintor norueguês queria representar.

“Andava de noite numa estrada. Estava cansado e doente. Fiquei olhando para o outro lado do fiorde; o sol estava se pondo; as nuvens estavam vermelhas —como sangue—, senti como se um grito passasse pela natureza. Pensei ter ouvido um grito. Eu pintei essa imagem. Pintei as nuvens como sangue real. As cores estavam gritando”, descreveu Munch, segundo o historiador Arne Kristian Eggum, que estuda sua obra.

Entre 1893 e 1916, o pintor norueguês fez várias versões de “O Grito”, em tinta e pastel, desenhos, esboços e litogravuras, além dos quadros que estão hoje Museu Nacional da Noruega –de 1893– e no Museu Munch – de ao redor de 1910.

Na procura pelas cores gritantes, experimentou pigmentos como zinco branco, azul da Prússia, azul ultramarino, vermelho vivo feito de sulfeto de mercúrio, amarelo-cromo, verde-cromo, laranja de cádmio e amarelo de cádmio. Foi este último que desvaneceu, e os cientistas descobriram o problema exato –havia cloretos na tinta usada por Munch.

Sob umidade, essa impureza acelera a deterioração. As pinceladas no céu nublado do pôr-do-sol e na figura central ficaram esbranquiçadas. Na água do lago, a massa de tinta descamou.

A descoberta envolveu várias estratégias de pesquisa em diferentes laboratórios europeus e visitas a Oslo. Numa delas, o físico nuclear brasileiro Renato Pereira de Freitas e uma equipe do italiano Molab, referência na análise de obras de arte, pegaram um avião em Perúgia num domingo à noite de 2017, levando desmontado numa mala um sofisticado equipamento de mapeamento molecular.

Como em uma radiografia, ele detecta os elementos químicos da obra sem causar danos a ela, diz Freitas, que durante cinco dias ajudou a mapear a presença de cádmio e cloro no quadro de 83,5 cm por 66 cm, de têmpera sobre cartão.

Versão de 'O Grito' feita por Edvard Munch's em 1895
Versão de 'O Grito' feita por Edvard Munch's em 1895 - Carl Court/AFP

Segundo Janssens, cujo laboratório também rastreou elementos na Noruega e fez ensaios de envelhecimento em amostras, Munch deve ter usado por acidente uma tinta de menor qualidade. O sulfeto de cádmio amarelo é obtido pela reação entre cloreto de cádmio e sulfeto de sódio; numa indústria ainda incipiente, pode ter sido incompleta ou feita de forma negligente, deixando resíduos.

Descoloração e descamação do mesmo pigmento também já foram documentadas pelo professor belga em obras de contemporâneos de Munch, como Henri Matisse, Vincent van Gogh e James Ensor. Nesses casos, a luz era o principal fator.

A degradação não pode ser revertida, mas o conhecimento dos processos que levaram a ela permite uma volta digital ao passado, reconstruindo as cores originais, diz Janssens.

A especialista em conservação de pinturas do Museu Munch, Eva Storevik Tveit, que também participou do estudo, diz que ele vai guiar a adoção de melhores condições de armazenamento e exposição de outros trabalhos do artista norueguês.

No Brasil, a investigação também terá consequências. De volta ao país depois de terminar seu pós-doutorado, Freitas conseguiu comprar um equipamento de mapeamento elementar para o Instituto Federal do Rio de Janeiro, o que vai permitir estudar obras brasileiras com a mesma técnica usada na pintura de Munch.

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