Documentos indicam que Raul Seixas não entregou Paulo Coelho à ditadura

Ao contrário do que consta no livro 'Não Diga que a Canção Está Perdida', de Jotabê Medeiros, músico não teria traído o escritor

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Cristina Serra Rogério Marques
Rio de Janeiro

No dia 28 de maio de 1974, o hoje escritor Paulo Coelho, na época começando a fazer sucesso como compositor, junto com o parceiro Raul Seixas, foi preso e torturado pelos órgãos de repressão da ditadura durante duas semanas.

A biografia de Raul Seixas, “Não Diga que a Canção Está Perdida”, escrita por Jotabê Medeiros e publicada no fim do ano passado, levantou a suspeita de que o cantor teria delatado o parceiro. Mas agora, 46 anos depois do episódio, vem à tona um terceiro personagem que esclarece um dos maiores mistérios envolvendo a biografia de dois astros da música brasileira.

O autor foi preso e torturado no lugar de um militante de esquerda quase homônimo do parceiro de Raul. O nome completo do escritor é Paulo Coelho de Souza. O do militante, que pertenceu ao extinto Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR, é Paulo Coelho Pinheiro.

Um documento, que só agora é divulgado, depois de publicado numa tese sobre Raul Seixas, defendida na Universidade de São Paulo, em 2016, ajuda a desfazer o mistério.

Quem é este terceiro personagem e como as histórias dos dois Paulos se cruzaram? A prisão de Coelho sempre intrigou quem o conhecia. Ele não participava da oposição à ditadura e tinha uma vida pública, com trabalho e endereço fáceis de serem descobertos por qualquer policial. As canções com Raul, porém, eram contestadoras e inspiravam rebeldia. Isso seria suficiente para levar o autor aos porões da ditadura? E qual a necessidade da delação de Raul se Paulo Coelho não estava na clandestinidade?

A suspeita de que Paulo Coelho teria sido delatado por Raul se baseou num documento do Centro de Inteligência do Exército, de 24 de abril de 1974, publicado no livro de Medeiros. O documento mostra que a dupla estava no radar dos órgãos de repressão por fazer músicas “de protesto”. A ficha se refere à canção “Ouro de Tolo”, do disco “Krig-ha, Bandolo!”, primeiro álbum solo de Raul como cantor e já contando com a parceria de Paulo Coelho, lançado em julho de 1973.

Junto com o disco, Coelho e Raul produziram um gibi, com ilustrações feitas pela então companheira de Coelho, Adalgisa Rios, que, na época, deixara a militância no PCdoB.

Raul foi chamado a dar explicações, como já acontecera com outras canções. No documento, está escrito que “por intermédio do compositor” seria possível achar e prender “o foragido Paulo Coelho Pinheiro, do PCBR”, e Rios, considerados “elementos subversivos”.

Um mês depois, Raul foi chamado a depor de novo. Desta vez, foi com o parceiro ao Dops, o Departamento de Ordem Política e Social. Raul logo foi liberado, e Coelho foi interrogado sobre o panfleto.

Ele contou que os desenhos eram de Adalgisa Rios e os agentes foram atrás dela. Os depoimentos seguiram pela madrugada, até que o casal foi liberado. Coelho e Rios já estavam num táxi quando foram interceptados por agentes, na praia do Flamengo, e levados para o temido Doi-Codi, órgão de repressão subordinado ao Exército. Ele foi torturado e ficou preso por duas semanas.

Ocorre que Paulo Coelho Pinheiro, o militante do PCBR mencionado na ordem de prisão do compositor, realmente existia e estava foragido. Agora, ele sai das sombras pelo testemunho de um ex-companheiro e de Diogo, seu único filho.

Diogo, um engenheiro ambiental de 34 anos, diz que só agora soube da biografia de Raul Seixas e que não tem dúvidas que o documento em questão se refere a seu pai. “É o nome do meu pai, o partido em que ele atuava e ele já estava foragido. Em 1970, ele conseguiu fugir para a França e escapou de ser preso e torturado. Voltou ao Brasil depois da Anistia e teve uma vida normal até morrer, em 2011”, conta o filho.

Ele acrescenta que o pai era reservado sobre o passado. “Não era um tema entre nós. Mas me orgulho muito da história do meu pai. Ele lutou por seus ideais e arriscou a vida pela democracia. Lamento, porém, que a repressão tenha confundido a identidade dele com a do Paulo escritor e que, por isso, ele tenha sofrido tanto. Sinto muita dor por isso.”

O escritor Paulo Coelho (à esquerda) e o cantor Raul Seixas, em foto de 1973
O escritor Paulo Coelho (à esquerda) e o cantor Raul Seixas, em foto de 1973 - Acervo Instituto Paulo Coelho/Divulgação

Outro documento da repressão, agora revelado, corrobora o entendimento de Diogo do caso. A ficha policial de dezembro de 1973, antes do depoimento de Raul, mostra Paulo Coelho Pinheiro, com uma foto do então estudante, e informações mais detalhadas sobre a sua atuação política.

O texto afirma ainda que Coelho Pinheiro fora militante do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, até 1968 e que, então, com dois amigos, trocou o PCB pelo PCBR para “fazer trabalho de massa na escola”.

Diz também que o militante fora eleito para o diretório acadêmico da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais. A ficha não informa, mas essa faculdade é a Cândido Mendes. Por coincidência, o parceiro de Raul também fora estudante de direito. A ficha em questão já misturava a identidade do militante com a do parceiro de Raul. Afirmava que, em julho de 1973, ao lado de Raul, Coelho Pinheiro escrevera o tal panfleto “distribuído clandestinamente, contendo propaganda subversiva”.

Um dos amigos de Coelho Pinheiro na época era o militante Jean Marc van der Weid, hoje com 74 anos, que fazia parte de outra organização, a Ação Popular. Eles se conheceram no movimento estudantil e participaram das manifestações que tiveram seu auge em 1968.

Uma delas, em 21 de junho daquele ano, ficou conhecida como Sexta-Feira Sangrenta. Pinheiro Coelho foi um dos feridos pela repressão policial. “O Paulo levou um tiro no braço, teve uma reação alérgica, talvez ao chumbo da bala, ‘entortou’ e foi medicado em um hospital”, recorda Weid.

Depois que saiu do hospital, Coelho Pinheiro entrou na clandestinidade. No fim de 1970, fugiu para Paris, onde passou a dar aulas de português. Algum tempo depois, Weid também foi para o exílio e chegou a morar por um período no apartamento do amigo.

Os dois documentos que mostram a mistura de informações sobre os dois Paulos constam da tese de doutorado de Lucas Marcelo Tomaz de Souza, um dos maiores pesquisadores sobre Raul Seixas do país. Como a foto de Paulo Coelho Pinheiro, na sua ficha policial, tem cerca de 50 anos, Souza pensou se tratar do compositor, mesmo com o sobrenome diferente —Pinheiro em vez de Souza.

Informado sobre a existência do militante, o pesquisador diz que agora a prisão de Paulo Coelho tem uma explicação.

“Não era comum, então, esse tipo de violência física contra músicos populares. A tortura era direcionada a militantes engajados em movimentos de esquerda, o que seria o caso do novo sujeito que entra na história”, diz Souza.

Ele argumenta ainda que a parceria entre os artistas continuou, mesmo com um estremecimento após a saída da prisão. “Se Paulo Coelho carregava a suspeita, é difícil entender que tenha mantido a amizade com o suposto traidor.”

O livro de Jotabê Medeiros, a biografia de Raul, tem só um dos documentos, aquele em que o agente da repressão diz que Paulo Coelho Pinheiro poderia ser encontrado e preso “por intermédio” do cantor.

No livro, o biógrafo lança a dúvida sobre a possível delação. A suspeita bastou para provocar ataques à memória de Raul, morto em 1989, aos 44.

Procurado, Medeiros, disse que não pesquisou a coincidência dos nomes. “O que posso dizer é que o meu interesse foi clarear as circunstâncias que fizeram Raul levar Paulo à polícia.” O biógrafo acrescentou que leu outros documentos da época e que chamou sua atenção o fato de o segurança de Raul pertencer a uma “organização paramilitar”.

Também procurado, o escritor Paulo Coelho preferiu não dar entrevista. O biógrafo dele, Fernando Morais, que publicou “O Mago - A Incrível História de Paulo Coelho”, em 2008, considera que a suposta traição foi enfim esclarecida.

Morais comentou que em anos de convívio com Paulo Coelho jamais percebeu qualquer ressentimento dele em relação ao ex-parceiro. “Esses documentos e o novo personagem jogam luz sobre duas biografias —a do Paulo, porque põe fim a um mistério de meio século, e a do Raul porque põe uma pedra sobre uma suspeita terrível, a de que ele teria delatado Paulo Coelho.”​

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