Entenda como a bandeira do Brasil virou símbolo dos apoiadores de Bolsonaro

Enquanto isso, parcela da população em crise com o verde e amarelo propaga emblemas alternativos nas redes sociais

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São Paulo

Um mastro de ferro atravessa dois andares da Casa do Povo, no bairro do Bom Retiro. No topo, está uma
bandeira do Brasil gasta, abatida, estirada sobre o chão.

Autora da obra, exibida há dois anos, Renata Lucas conta que ela surgiu às vésperas das últimas eleições presidenciais.

É uma bandeira inviabilizada, descreve a artista, “que só pode ser vista do andar de cima, que não acolhe a todos”.

Foi uma de muitas obras a se apossarem do símbolo pátrio por excelência desde então.

No ano passado, Beto Shwafaty deu boas-vindas ao público de uma mostra com uma parede meio “verde exército”, meio “amarelo pote de ouro”.

Jaime Lauriano, que com frequência resgata o papel da ditadura militar na difusão de símbolos nacionais, substituiu as estrelas do centro da bandeira por mudas de pau-brasil numa performance.

Rosângela Rennó juntou dois pés direitos de um par de Havaianas verde e amarelo para “celebrar o retorno do país à extrema direita”, como escreveu no catálogo da exposição.

Enquanto artistas desconstruíam o emblema à luz do novo governo, uma parcela da população se aproximava cada vez mais dele, vestindo a bandeira para ir às ruas e decorar seus ícones do WhatsApp.

A tal ponto que, nos últimos tempos, há quem enxergue na bandeira menos a nação e mais o terço do eleitorado fidelíssimo a Bolsonaro —pontinhos de verde e amarelo numa paisagem deserta por causa da pandemia.

Como quase tudo no Brasil de hoje, o fenômeno divide opiniões. Enquanto uns descrevem essa assimilação como um verdadeiro roubo dos símbolos pátrios pela direita, outros rebatem que a culpa, na verdade, é da esquerda, que deixou a bandeira ao léu e enterrou toda a história do país.

Mas, para entender esse processo, é preciso voltar sete anos, para as manifestações de junho de 2013, segundo o escritor e filósofo Francisco Bosco.

Diretor do documentário “O Mês que Não Terminou”, ao lado do artista Raul Mourão, ele conta que, assistindo às imagens de arquivo que compõem o longa, num primeiro momento as cores que dominavam as ruas eram o preto, dos black blocs, e o vermelho, dos partidos de esquerda.

Foi só quando alguns manifestantes se organizaram contra a corrupção que tons de verde e amarelo surgiram no cenário. “Ela era percebida como uma causa patriótica, ‘universal’. Daí vestir as cores da bandeira”, afirma Bosco.

Além disso, o mesmo grupo demonstrava uma insatisfação crescente com o que o professor Rafael Nogueira, presidente da Biblioteca Nacional e seguidor de Olavo de Carvalho, chama de “pauta globalista”.

“Havia a sensação de que as esquerdas obedeciam a uma moda internacional”, ele diz, lembrando projetos como o Mais Médicos, que estabeleceu parceria com Cuba, e a tentativa de fortalecer órgãos supranacionais, como a União de Nações Sul-Americanas, a Unasul. “Ou seja, o Brasil não estava bom, e o dinheiro dos tributos estava sendo usado numa visão internacionalista.”

Nesse sentido, Bolsonaro, que, por causa da formação militar, tem uma reverência natural aos ícones da pátria, foi “uma peça que se encaixou bem”, continua Nogueira. Vide o slogan da sua campanha, “Brasil acima de todos”.

Por um lado, vale lembrar que não foi só por aqui que movimentos conservadores passaram a reivindicar emblemas nacionais. Suíça, Hungria e Espanha foram alguns dos países que testemunharam processos semelhantes nos últimos anos.

A estratégia, diz a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, ainda é comum em regimes populistas em geral, categoria na qual ela enquadra o governo Bolsonaro. Ao elevarem a pátria, eles transformam adversários em inimigos, bodes expiatórios. “E rezar para convertidos é ótimo”, afirma ela.

Por outro lado, lembra Francisco Bosco, a associação entre direita e nacionalismo não é automática. No Brasil dos anos 1960, por exemplo, a esquerda, anti-imperialista, defendia a “cultura nacional”. Mas a pauta foi há tempos abandonada pelo grupo, que passou a ver nela um “falso universalismo, encobridor de conflitos sociais”, diz o filósofo.

Há ainda um terceiro momento na história recente que explica a identificação da nova direita com o verde e amarelo, diz Schwarcz. É o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, que, segundo a historiadora, marca o início da polarização política de hoje.

“Nesse momento, um grupo se utiliza daquele ritual do poder para criar uma dicotomia”, ela afirma, acrescentando que isso é algo recorrente em períodos de crise. “Esse grupo então sequestra os símbolos para si, dizendo que são eles os verdadeiros patriotas, e os demais, não.”

Nogueira se opõe à análise de Schwarcz. Ele argumenta que aqueles que adotaram o verde e amarelo querem declarar que estão além de esquerda e direita. “No fundo, é a ideia de um país melhor. Não é uma visão de exclusão”, diz.

Se o professor afirma que a esquerda ainda pode se reencontrar com o nacionalismo, Schwarcz conta que não vê a bandeira sendo retomada pelos opositores de Bolsonaro tão cedo. Mas ressalta que, nas ciências humanas, os símbolos nunca são fixos, e mudam a depender do contexto.

Enquanto isso, bandeiras alternativas circulam nas redes sociais. É o caso da “Bandeyra” do artista Frederico Costa que, nascida na época do impeachment, substitui o verde e amarelo por rosa e azul e a faixa de “ordem e progresso” por um arco-íris. "Gosto de dizer que ela de é um país imaginário, cujo território é o corpo de quem a escolhe", ele diz.

Ou da imagem adotada por Bosco no WhatsApp, uma combinação das bandeiras do Haiti e do Brasil que estampa a faixa “estou falando brasileiro”, em referência à fala de um haitiano que questionou Bolsonaro no início da pandemia.

Já a artista Renata Lucas diz que a experiência de crescer na ditadura fez com que ela se desiludisse com ícones do tipo. “Sou uma pessoa de poucos panos”, diz. “Sei do estrago que esse tipo de apropriação simbólica pode provocar.”

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