Entenda como o coronavírus pode mudar até nosso jeito de falar português

Pandemia faz com que palavras ganhem novos usos e termos sejam importados da ciência

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mulher com língua presa em máquina de escrever

'Poema', obra da artista plástica Lenora de Barros Divulgação

São Paulo

O novo coronavírus veio provocar abalos na nossa relação com quase tudo em volta, inclusive com uma ferramenta de importância que nem sempre levamos em conta –as palavras.

Termos que usávamos raramente, como quarentena e pandemia, se tornaram correntes —já que pela primeira vez a nossa geração as vive na pele— e outras expressões entraram com o pé na porta no léxico do dia a dia, caso de “distanciamento social”, “achatar a curva” e, claro, o próprio “coronavírus”.

Já outras palavras renovaram sua relevância, ganhando novos significados. “Vacina” é um anseio coletivo para o futuro, “gripe” se tornou um termo quase politizado, “peste” veio trotando de tempos antigos para se tornar assombrosamente atual.

O jornal britânico The Guardian conta que o dicionário Oxford teve uma atualização extraordinária no mês passado para adicionar palavras que tomaram o discurso global e entraram de supetão na língua inglesa, como “Covid-19”.

Tudo isso planta sementes de mudança no idioma, essa entidade inquieta. Como disse o linguista português Vergílio Ferreira, “a própria língua, como ser vivo que é, decidirá o que lhe importa assimilar ou recusar”, cuspindo alguns arranjos novos, engolindo outros. Resta imaginar como será o português depois dessas reviravoltas todas.

Quem lembra a frase do linguista é o professor Pasquale Cipro Neto, que reconhece, hoje, a mudança de enfoque sobre certas palavras –“ninguém mais quer ser ‘positivo’, por exemplo”– e um aumento do interesse por termos científicos.

“Quando escolhemos uma palavra, vêm junto com ela valores de um determinado campo do conhecimento”, diz Sheila Grillo, professora de linguística da Universidade de São Paulo. “Agora há a incidência da medicina, da biologia.”

Segundo ela, com a popularização do uso de termos científicos pode vir uma revalorização da autoridade da própria ciência, num momento em que instituições de referência como a universidade e o jornalismo profissional vêm sofrendo ataques.

“Junto com o léxico do universo científico, vêm sua visão de mundo e sua credibilidade. Parece que, em algumas esferas, esse discurso da ciência está voltando a fazer sentido.”

Pasquale ressalva ser difícil prever qualquer mudança permanente na língua, já que quem faz afirmações de caráter genérico “corre o risco de ser atropelado pelos fatos posteriores”.

Por isso, ao refletir sobre a chance de o vocabulário médico representar uma volta por cima do pensamento científico, ele se limita a dizer que “gostaria que sim”. E que espera que as pessoas notem que a linguagem que usam está fundada em um conhecimento que é fruto do estudo e da pesquisa acadêmica.

“A sociedade deveria perceber e valorizar isso, e não fazer como o jumento-mor e sua jumentalha, que desprezam a ciência e a terminologia científica”, ele acrescenta, em crítica ao presidente Jair Bolsonaro. "O asno-mor não consegue pronunciar nada."

Para trazer ao chão o discurso técnico dos cientistas, ambos ressaltam a importância da imprensa. “O jornalismo é o lugar do encontro”, diz Grillo, da USP. “Cumpre esse papel de aproximar a especialidade e o discurso mais cotidiano.”

Ela lembra estudos que observaram a mídia impressa para analisar como se dava a designação da febre da vaca louca, na França dos anos 1990. O nome que se popularizou, obviamente, não tem nada de técnico, e acabou pegando por ser um sintoma amplamente observável da doença e uma forma evidente de se referir a ela sem usar termos difíceis.

Algo parecido aconteceu, afirma Pasquale, com a Aids, sigla médica que acabou virando palavra comum, mesmo que o significado do acrônimo –síndrome da imunodeficiência adquirida, em inglês– não seja nem de longe conhecido por todos que usam o termo.

E sobre a doença de agora?

“Suponho que o que vai pegar mesmo é o que já pegou, o corona”, diz Deonísio da Silva, escritor e professor. “O futuro a Deus pertence, mas é difícil alguém se referir, lembra a Covid? Lembra o Sars, o coronavírus? A gente lembrará como os tempos do corona.”

O próprio modo de chamar o vírus já é objeto de rinha política e, como lembra Sheila Grillo, “as palavras nunca são neutras, sempre trazem um recorte da realidade”.

Basta perceber o esforço das alas trumpistas e bolsonaristas para usar o termo “vírus chinês”, cimentando a ideia de que o país asiático tem responsabilidade em disseminar o contágio (e, segundo teorias da conspiração sem resquício de prova, em criar o agente da doença).

O uso da palavra “peste” para se referir ao momento atual é como que interditado —do mesmo modo que era, segundo o professor Deonísio da Silva, no século 14, época do “Decamerão” de Boccaccio. “A peste só foi chamada assim depois de muitas décadas da primeira vez em que apareceu.”

“Nós evitamos certas palavras pelo pavor que inspiram”, afirma o linguista. “O demônio tem dezenas de nomes no Brasil porque não queremos dizer Diabo.”

Segundo o professor, o desconhecido total, como uma situação de pandemia, faz com que aceitemos passivamente a entrada de siglas e procedimentos científicos nas falas cotidianas “como um valor absoluto” assim como a invasão dos neologismos, “que chegam à nossa casa mudando tudo”.

“Não é possível que não tenhamos outro modo de entregar coisas em casa que não seja o 'delivery'”, afirma ele. “Outra palavra que de repente ficou indispensável é o ‘home office’, quando os portugueses, que adaptam muito, já usam o teletrabalho.”

Grillo lembra que, no esforço de tentar explicar fenômenos novos como este, é comum fazer empréstimos de outras línguas e atualizar termos antigos.

“Alguns desses termos são impostos meio na marra”, diz o professor Pasquale. “Isso é muito chato, quando o gerente do banco fala comigo que tem um ‘call’, que ‘call’?”.

E nesses tempos em que a testagem em massa tem sido um ponto focal de discussão, outro anglicismo tem dominado as notícias, o de que fulano “testou positivo”.

“É traduzido diretamente do inglês”, diz Pasquale. “Não dá para dizer que é errado, porque o uso legitima a expressão, apesar de não ser a sintaxe portuguesa padrão. É uma tradução literal que vigora.”

Enquanto estamos no nosso "lockdown" particular, pedindo delivery pelo app, assistindo a lives e fazendo binge-watching no streaming, as palavras que usamos ganham vida, amadurecem, apodrecem —sem que notemos, se transformam.

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