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Estamos em 2020, e negros continuam sendo fuzilados como animais, diz Spike Lee

Premiado cineasta lança filme sobre veteranos do Vietnã, 'Destacamento Blood', na Netflix

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Reggie Ugwu
The New York Times

É engraçado, conversar por Zoom com Spike Lee. Ele está longe, confinado em uma caixa dentro de uma caixa na tela do computador. Mas não parece diminuído.

Talvez seja sua aparência —o boné e os óculos— ou a forma pela qual ele olha para você. Lee encara as câmeras diretamente há mais de 30 anos. Pense em seus personagens mais famosos —Mars Blackmon, de “Ela Quer Tudo”, seu filme de 1986, e de uma série de comerciais para a Nike com Michael Jordan; ou Mookie, de “Faça a Coisa Certa”— e são eles que estão diante de seus olhos.

Essa é postura preferida de Lee –destemido, olhos nos olhos, irrefreável. E funciona. Mesmo em uma videoconferência repleta de falhas, ele é inconfundível.

Spike Lee com a estatueta que recebeu pelo roteiro de 'Infiltrado no Klan' (2018) - Robyn Beck/AFP

Lee está vivendo em isolamento em sua casa em Manhattan desde março, quando a pandemia do coronavírus resultou em confinamento para boa parte da cidade de Nova York. Seu único contato regular com o mundo exterior acontece de bicicleta —um presente feito sob encomenda, pintada de azul e laranja em homenagem ao seu amado New York Knicks.

Lee pedala sozinho, de cinco a oito quilômetros por dia, usando uma máscara e um capacete. De noite, ele janta com sua mulher, Tonya, e os dois filhos do casal, Satchel e Jackson, na hora em que os vizinhos começam a aplaudir e bater nas panelas como tributo aos profissionais de saúde da cidade.

Lee tem 63 anos e é negro, o que o põe num grupo de alto risco diante do vírus. Ele está com medo? “Pode apostar que estou”, ele disse, sentado em um sofá sob um cartaz superdimensionado de “A História de Jackie Robinson”, uma cinebiografia lançada em 1950. “É por isso que fico sentado em casa."

Esse é Lee, num momento estranho e singular de sua carreira. Ele trabalha há mais de quatro décadas e realizou mais de 30 filmes cujos temas traçam o curso brutal e dilacerante da história. Agora, em meio a uma calamidade mundial, e com um novo filme, “Destacamento Blood”, que revisita a guerra do Vietnã, pronto para lançamento, ele volta a servir como testemunha —mais velho, mais contemplativo, mas insaciável como sempre, apesar de já ser dono de um dos legados mais sólidos do cinema dos Estados Unidos.

“Um dia depois de receber o Oscar, embarquei em um avião para a Tailândia”, ele disse, em referência à locação da filmagem de “Destacamento Blood”, que estreia no dia 12 de junho na Netflix. Tonya levou a estatueta para casa —a primeira que ele conquistou em competição, pelo roteiro adaptado para “Infiltrado na Klan”, de 2018. A estatueta fica na biblioteca, ao lado do Oscar honorário que ele recebeu em 2015. “Já eu voltei direto ao trabalho”.

Mas recentemente ele vem tendendo a pensar sobre o passado mais do que costumava, ruminando sobre os triunfos iniciais de sua carreira e sobre alguns dos fracassos mais dolorosos. Nos primeiros dias da pandemia, Lee publicou diretamente o roteiro de um projeto com o qual sonhou mas não conseguiu realizar, uma cinebiografia de Robinson que ele esperava dirigir, com Denzel Washington no papel principal.

“Quando tudo para, você tem muito tempo para pensar”, disse Lee. “Não conseguir realizar aquele filme foi uma das minhas maiores decepções.”

Uma coisa que Lee não está fazendo, porém, é se preocupar com a “volta ao normal”. E ele tem muita coisa a que retornar. “Destacamento Blood” estaria sendo exibido em salas de cinema, a esta altura, se houvesse cinemas abertos.

O Yankees, seu time de beisebol favorito, está parado até julho, pelo menos. E o Festival de Cinema de Cannes, no qual Lee lançou sua carreira e cujo júri ele presidiria este ano (o primeiro negro a ocupar o posto) foi cancelado. (Lee presidirá o júri em 2021.)

Não é difícil imaginar Lee, um sujeito que, quando mais jovem, entrou em confronto com todo o mundo, do jogador de basquete Reggie Miller à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, sentindo irritação e impaciência por causa das interrupções.

Mas a gravidade da pandemia pôs tudo mais em perspectiva. “Não vou ficar sentado desejando isso ou aquilo”, ele disse. “Pessoas estão perdendo a vida por causa disso, perdendo parentes. Por isso agradeço a Deus por estar vivo e tento aceitar cada dia como ele vier.”

Lee está agudamente consciente de que muita gente não tem o luxo de se isolar, ao contrário dele. Uma maioria saudável de seus filmes é protagonizada por personagens de classe trabalhadora, parecidos com as pessoas em companhia das quais ele cresceu, no Brooklyn —entregadores de pizza, professores e cabeleireiros negros—, e o cineasta sempre argumentou que essas pessoas merecem ser tão valorizadas e respeitadas quanto quaisquer outras. E ele vem assistindo enquanto elas arriscam a vida a serviço dos demais de nós.

“As pessoas que estão fazendo o trabalho sujo —nas mercearias, nas bodegas, os carteiros— não podem ficar em casa”, ele disse. “Põem suas vidas em perigo a cada dia simplesmente para chegar ao trabalho. Minha esperança é que aqueles que encaram essas pessoas com desprezo, que as ignoram, mudem de pensamento, porque são essas as pessoas que mantêm as coisas em funcionamento.”

Como tributo pessoal aos trabalhadores de Nova York, Lee produziu um curta-metragem, “New York, New York”, que estreou neste mês na CNN. Filmado durante um mês e usando a famosa balada homônima, de Frank Sinatra, como trilha sonora, o filme captura imagens dos marcos da cidade, fantasmagoricamente vazios. Mas termina com uma nota de otimismo: trabalhadores hospitalares chegando para o resgate como a cavalaria, vestidos em trajes protetores.

“Vai haver ótimas histórias sobre esse período —romances, música, documentários, poemas, longas, programas de TV. Será como que uma pequena indústria”, ele disse. “E espero que as pessoas contem a verdade. Há muitos heróis reais”, ele prosseguiu, acrescentando: “Basta contar a verdade, e será cativante”.

Se os trabalhadores na linha de frente são os heróis da história, fica claro quem Lee vê como vilão. O cineasta, antagonista declarado de Donald Trump desde a década de 1980, lamenta a “patética falta de liderança” do presidente e destaca suas declarações públicas muito criticadas sobre tratamentos absurdos para o vírus.

“Dizer às pessoas que usem luzes ultravioleta? Que bebam desinfetante e coisas assim?”, questionou Lee, rindo. Ele estreitou os olhos, como se não conseguisse acreditar. “Pessoas vão terminar no hospital por acreditar nessas coisas”, ele disse. “É preciso parar com isso.”

Trump é uma figura significativa em “Destacamento Blood”, um filme de ação e aventura sobre quatro veteranos de guerra negros que voltam ao Vietnã mais de 40 anos depois da guerra. Um dos personagens centrais, Paul, interpretado por Delroy Lindo, ator que colabora com Lee há mito tempo, é partidário declarado de Trump e passa boa parte do filme usando um boné com o lema de campanha do presidente, “make America great again”.

Ainda que a defesa feroz do presidente por Paul possa vir como surpresa para alguns, Lee tem um longo histórico de retratar personagens negros complicados. As pesquisas de boca de urna mostraram que, embora a vasta maioria dos eleitores negros tenha optado por Hillary Clinton na votação de 2016, 13% dos homens negros votaram em Trump.

“Minha mãe me ensinou muito cedo que as pessoas negras não formam um grupo monolítico”, disse Lee. “A fim de tornar a história dramática, eu imaginei qual seria a característica mais extrema que eu poderia dar a um dos personagens.”

“Foi um problema para mim, no começo”, disse Lindo, para o qual “Trump é o oposto de tudo em que acredito”. O ator prosseguiu: “Tentei convencer Spike a mudar de ideia. Perguntei se não podíamos fazer dele simplesmente um cara conservador. Mas acho que existem algumas pessoas negras tão profundamente insatisfeitas por sua falta de representação que elas se sentem dispostas a acreditar que alguém como Trump realmente poderia ajudar”.

Os quatro veteranos de guerra do filme —interpretados por Lindo, Clarke Peters, Isiah Whitlock Jr. e Norm Lewis— se referem afetuosamente uns aos outros como “bloods”, algo como irmãos de sangue, um termo que os soldados negros reais usavam.

Numa história que homenageia “O Tesouro de Sierra Madre”, de 1948, “A Ponte do Rio Kwai”, de 1957, e “Apocalypse Now”, de 1979, os “bloods” estão numa missão para recuperar o corpo do sargento que comandava seu grupo de combate, Stormin’ Norman, papel de Chadwick Boseman, que, não incidentalmente, está enterrado perto de um tesouro secreto.

O drama que se desenvolve —entre os integrantes do grupo e entre o grupo e seus rivais no Vietnã atual— é uma parábola moderna sobre a depravação duradoura da guerra e as falsas promessas do individualismo americano.

“Todos nós, e a humanidade como um todo, temos de aprender a pensar sobre mais do que nós mesmos”, disse Lee. “Se a pandemia nos mostrou alguma coisa é que precisamos apoiar uns aos outros. Não podemos voltar ao que fazíamos na era AC, antes do corona, com grande desigualdade entre as pessoas que têm e as pessoas que não têm.”

Lee, nascido em 1957 em Atlanta, o mais velho dos seis filhos de seus pais, cresceu assistindo a reportagens sobre a guerra do Vietnã na televisão. Suas memórias mais indeléveis envolvem alguns de seus heróis denunciando o conflito, entre os quais o reverendo Martin Luther King e Muhammad Ali, que teve seu título mundial dos pesos pesados revogado por recusar a convocação para as Forças Armadas dos Estados Unidos.

O filme incorpora imagens documentais dos dois. Uma sequência de abertura também traz imagens de Angela Davis, Malcolm X e Kwame Ture, líder do movimento Black Power, cuja ascensão no final da década de 1960 coincidiu com os anos mais contenciosos da guerra.

A linha indistinta entre a história real e a história do filme é um traço clássico dos trabalhos de Lee.

“Infiltrado na Klan” termina com imagens da violência racista em Charlottesville, no estado americano da Virgínia, em 2017, e gera um confronto entre o horror fictício e o horror factual. Lee usou técnica semelhante na abertura de seu épico “Malcolm X”, em 1992, que combinava um discurso incendiário de Denzel Washington, no papel-título, e imagens da agressão de policiais a Rodney King.

“O que existe de mais consistente nele é a ideia de que o passado não é apenas o passado, mas tem uma conexão com o agora”, disse Kevin Willmott, parceiro de Lee nos roteiros de “Infiltrado na Klan” e “Destacamento Blood”.

“Creio que ele acredita que nosso país foi prejudicado por filmes que tratam a história erroneamente, e que nós, especialmente como minorias, temos a responsabilidade de contar a verdade da forma pela qual a vemos.”

Lee começou a lidar com o poder do cinema para dar forma à história quando aluno da Universidade de Nova York, na década de 1980. Em seus estudos no programa de pós-graduação em cinema da instituição (ele mais tarde se tornaria professor catedrático lá), Lee ficou chocado pelo que descreve como retrato positivo de seus professores sobre o épico “O Nascimento de uma Nação”, de D.W. Griffith, considerado o primeiro filme importante da história do cinema, mas maculado por sua promoção da causa da supremacia branca.

“The Answer”, um filme que Lee realizou quando estudante, sobre um roteirista negro encarregado de reescrever “O Nascimento de uma Nação”, era uma negação desafiadora do trabalho de Griffith. E um impulso semelhante anima os seus trabalhos desde então.

“Romances, filmes, TV, tudo isso promoveu uma falsa narrativa: o herói branco mítico”, disse. “Veja os filmes que John Ford fez com John Wayne, que retratam os indígenas como desumanos, selvagens, animais, monstros. A história é mesma com relação aos negros, aos gays —fomos todos desumanizados.”

Com “Destacamento Blood”, Lee viu uma oportunidade de explorar um lado da experiência negra no Vietnã que não havia sido mostrado no cinema, a despeito dos muitos filmes clássicos que foram feitos sobre a guerra.

O roteiro original, intitulado “The Last Tour” e escrito por Danny Bilson e Paul De Meo, falava de soldados brancos. Lee e Willmott começaram a reescrever a trama em 2017, depois que a saída do diretor original do projeto, Oliver Stone, foi anunciada.

Os dois estavam especialmente interessados na psicologia dos soldados negros que lutaram pela liberdade no exterior mas a tinham negada em casa, um tema que Lee explorou em “Milagre em St. Anna”, de 2008, seu filme sobre a Segunda Guerra Mundial.

Em “Destacamento Blood”, vemos a refração dessa dissonância cognitiva ao longo do tempo, quando os “bloods”, como a porcentagem desproporcionalmente elevada de soldados negros que serviram na guerra, contemplam o passado e tentam avaliar o estrago em suas vidas.

“Tudo que eles tinham era uns aos outros, e existia uma unidade e irmandade real que surgiu disso”, disse Willmott.

Lee acrescentou flashbacks, entre os quais um no qual Stormin’ Norman fala sobre Crispus Attucks, um negro que se tornou a primeira baixa na guerra de independência dos Estados Unidos.

Outro desses momentos, inspirado por histórias reais contadas por veteranos negros, mostra o momento em que os “bloods” recebem a notícia do assassinato de Martin Luther King.

“Os soldados negros ficaram indignados”, disse Lee. “Estavam a ponto de disparar as armas, e não seria contra o Viet Cong.”

Um aspecto notável é que os atores, todos com mais de 50 anos, interpretam seus eus mais jovens sem maquiagem rejuvenescedora ou efeitos digitais, nos flashbacks. De acordo com anotações sobre o filme enviadas à imprensa, o objetivo disso era ilustrar as “memórias vivas” dos protagonistas, e como “os dilemas e mesmo as doenças atuais afetam as recordações que eles têm de suas vidas”.

Lee fala de modo mais pragmático sobre essa escolha. “Eu não tinha US$ 100 milhões para reduzir a idade deles”, ele disse, em uma alusão ao orçamento de supostamente US$ 160 milhões de “O Irlandês”, drama dirigido por Martin Scorsese para a Netflix no ano passado, sobre velhos lidando com as memórias de seu passado.

A Netflix, que não revela seus orçamentos, também produziu duas temporadas de uma série de Lee baseada no filme “Ela Quer Tudo”, e o diretor disse que em geral amava trabalhar com a empresa. “Acho que conseguimos transformar algo negativo em positivo”, ele disse.

Além das imagens de protestos contra a guerra, “Destacamento Blood” também incorpora imagens documentais muito explícitas do conflito, entre as quais uma foto impressionante do massacre de My Lai, e reafirma a capacidade de Lee de se indignar com seu país.

Essa capacidade voltou a ser testada recentemente quando imagens mostrando Ahmaud Arbery sendo morto foram veiculadas, neste mês.

“Estamos em 2020, e pessoas de pele negra e marrom continuam a ser fuziladas como animais”, disse Lee, com veemência. “Me diga em que mundo dois negros em uma picape, armados com uma pistola e uma espingarda, seguem um branco que está fazendo caminhada e o matam, e a polícia demora dois meses para prendê-los?”

Mas a indignação é uma emoção complexa. E a de Lee, como costuma ser o caso, pode ser compreendida com mais precisão se for vista como capa para um sentimento mais profundo, que é associado com menos frequência ao iconoclástico cineasta –a mágoa.

“Sempre acreditamos na promessa do que este país poderia ser; fomos muito patriotas”, ele disse. “Mas acho que patriotismo é dizer a verdade aos poderosos. É patriótico que você se pronuncie sobre as injustiças neste país. Isso é ser um patriota americano.”

Tradução de Paulo Migliacci​

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