Descrição de chapéu The New York Times

Filho de Joe Biden trocou cargo em empresa na Ucrânia por carreira artística

Hunter, envolvido no imbróglio que culminou em pedido de impeachment de Trump, agora trabalha em ateliê

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Adam Popescu
Los Angeles | The New York Times

Usando coturnos, jeans e uma camiseta de mangas compridas, Hunter Biden conduziu o repórter por uma escadaria de pedra, rumo a um pavilhão de piscina transformado em ateliê de arte, no bairro de Hollywood Hills.

O estúdio estava repleto de pinturas abstratas e decorativas —florais psicodélicos e padrões etéreos que parecem a natureza vista por um microscópio, com uma pontinha de surrealismo. Havia quase cem quadros, todos de sua autoria. Alguns portavam a assinatura RH Biden, de Robert Hunter Biden, filho de 50 anos do vice-presidente de Barack Obama.

“O que você vê?”, perguntou ele, mudando de lugar vidros de tinta e um pincel de cabo de bambu.

Mas talvez a questão mais importante seja –o que o mundo exterior vê? Para um artista desconhecido, até que o nome dele é muito conhecido, mas pelos motivos errados.

A solicitação de ajuda estrangeira pelo presidente Donald Trump para investigar o papel de Hunter Biden numa companhia ucraniana de gás natural chamada Burisma foi a ação que deu origem ao movimento de impeachment do presidente.

Os republicanos continuam a pressionar por uma investigação separada sobre o trabalho de Biden para a empresa. Os democratas se preocupam com a possibilidade de que seus curiosos empreendimentos comerciais possam representar ameaça à campanha presidencial de seu pai, caso este volte à condição de favorito entre os pré-candidatos do Partido Democrata depois das primárias de março.

Hunter Biden não estava certo do que o mundo poderia pensar de sua nova empreitada, mas insistiu que falava sério. Disse ter cometido muitos erros na vida —ele já falou abertamente sobre seu vício em drogas—, mas afirmou que se tornar artista não era uma decisão impensada.

Pintar “está literalmente mantendo minha sanidade”, disse ele. “Resisti por anos a me definir como artista. Mas agora me sinto confortável com isso."

Hunter Biden pintando em seu estúdeio de arte em Los Angeles, em novembro de 2019
Hunter Biden pintando em seu estúdeio de arte em Los Angeles, em novembro de 2019 - The New York Times

Esperando que portas se abram

Como artista ainda não descoberto, ele está em situação melhor do que muitos colegas. Vive em uma casa alugada de 180 metros quadrados em uma travessa de Mulholland Drive, em Hollywood Hills, e na sua entrada para carros há um Porsche Panamera. A casa oferece muita luz natural e um pavilhão de piscina, que ele transformou em estúdio de arte.

Das janelas do imóvel, que fica numa encosta e, segundo o proprietário, foi alugado em 15 de junho de 2019 por US$ 12 mil, ou R$ 62,6 mil, mensais, ele vê, abaixo, o vale de San Fernando, a leste Burbank e os Universal Studios e a oeste a via expressa 405.

“Está vendo aquele celeiro vermelho?” Ele apontou para uma casa em estilo rural no topo da montanha ao lado e disse que ela pertence ao artista David Hockney. Depois, se concentrou em quatro falcões de cauda vermelha que aproveitavam as correntes de ar quente para subir, uma técnica chamada ascensão térmica. “Olha só”, disse ele, acompanhando o voo com o olhar. “Eu os vejo todos os dias. Adoro."

A cada manhã, ele pinta em silêncio num atleliê equipado com um televisor sem acesso aos canais de notícias. Ao meio-dia, ele cria "uma ideia básica sobre o produto final", aproveita para "dar uma parada”, e ouvir música country.

“No momento, tenho ouvido muito ‘Sound & Fury’, de Sturgill Simpson”, disse ele durante uma visita do repórter, no final de 2019.

Depois da pausa, Biden volta ao trabalho, sempre desenhando "de memória", e nunca recorrendo a modelos.

Recobertos por camadas de tinta, há rostos e órgãos contorcidos em amarelo cálido, azul melancólico e vermelho zangado —formas dentro de formas. Ele disse que às vezes até 14 camadas de tinta à base de álcool são necessárias para que o material se fixe ao papel japonês yupo quase indestrutível que ele usa como tela.

Biden sopra a tinta por um canudo metálico —ela seca rapidamente e tem uma progressão natural. "Você precisa estar muito concentrado para alterá-la da maneira que sua imaginação requer”, afirmou.

Algumas das imagens que ele pinta lembram fantasmagoricamente o artista e seu pai, mas ele rejeita a conexão. “Não são ninguém.”

Seus dedos e antebraços mostram manchas de tinta, e suas unhas estão manchadas de vermelho e preto. Há manchas em seus jeans e em suas botas, algo que sua mulher, Melissa Cohen —com quem ele se casou em maio depois de uma semana de namoro—, não suporta. “Sempre sujo as calças. Nem percebo, mas Melissa odeia”, comentou o artista.

Cohen, que está grávida do primeiro filho do casal, é uma cineasta sul-africana, de pouco mais de 30 anos, que viveu por muito tempo em Israel.

Hunter Biden em seu estúdio de arte em Los Angeles, em novembro de 2018
Hunter Biden em seu estúdio de arte em Los Angeles, em novembro de 2018 - The New York Times

No dia seguinte ao primeiro encontro do casal, Biden tatuou a palavra hebraica “shalom”, que significa “paz”, em seu bíceps esquerdo, o que dá ao casal tatuagens idênticas. Ele também tem uma tatuagem da região de Finger Lakes, em Nova York, nas costas, porque sua mãe cresceu lá.

“É muito abstrata, às vezes muito sombria”, disse Cohen sobre a arte do marido. “Muita coisa nela é inspirada pela natureza."

Biden começou a procurar uma galeria que o represente, com a ajuda de Lanette Phillips —que não é alguém que tipicamente seria vista como agente de um artista visual— no final de 2019.

Phillips é produtora de vídeo e dirige uma empresa de administração de talentos que atende a clientes como os cineastas Quentin Tarantino e Darren Aronofsky. Velha amiga da família Biden, ela organizou um evento de arrecadação de verbas de campanha, que estava lotado de astros para o antigo vice-presidente, em novembro, na casa que ela divide com Rick Lynch, sócio de sua empresa de marketing de entretenimento, em Pacific Palisades.

Biden ainda não assinou com uma galeria, e Phillips disse que não está mais o assessorando; mas ele continua determinado a exibir seu trabalho.

Normalmente, o mundo da arte é um ótimo lugar para fazer os amigos certos, frequentar as festas certas, e um ambiente mais cômodo que o de Washington. Mas Biden pode ter dificuldades para convencer o público de que a palavra “artista” merece estar no seu currículo, já que a atividade foi precedida por carreiras como advogado, lobista e dirigente de fundos de capital privado.

Ele não tem treinamento formal como artista, mas disse que já rabiscava desde os sete anos e que não era um diletante. “É algo que levo a sério há muito tempo, mas não necessariamente para consumo público.”

O nome Biden vai gerar rejeição ou interesse no mundo artístico? “Provavelmente as duas coisas”, disse a colecionadora Beth Rudin DeWoody, presidente da Rudin Family Foundations e membro dos conselhos do Museu Whitney de Arte Americana e do Museu Hammer.

DeWoody não viu os quadros de Biden, mas disse que ama a ideia de um desconhecido entrando no jogo. “Provavelmente haverá muita curiosidade, caso ele prove ser um grande artista", disse ela.

Michael Kohn, dono da galeria Kohn, em Los Angeles, não tem muita certeza sobre o assunto

“Bagagem demais”, disse ele, comparando Biden a atores como Sylvester Stallone ou Michael York, que tentaram se tornar artistas mas não conquistaram sucesso de crítica. “A transição não funciona, porque a percepção pública já está estabelecida."

“Dependendo de seu nível de competência, os quadros podem ser bons”, acrescentou Kohn. “No entanto, vai demorar muito tempo para que ele ganhe espaço no mundo da arte que eu e meus colegas conhecemos."

Pintura como terapia

A cocaína e a vodca foram companheiras de Biden por anos. Ele já falou muitas vezes sobre enfrentar os demônios do vício e das perdas pessoais. Sua mãe, Neilia, e sua irmã, Naomi, morreram em um acidente de automóvel em 1972, no qual Hunter, que tinha dois anos, sofreu uma lesão severa na cabeça.

Mais tarde, segundo ele, ao buscar uma forma de escapar às tentações, a pintura se tornou uma terapia. O mesmo vale para o ato de escrever poemas e contos (ele foi admitido pelo programa de escrita criativa da Universidade de Syracuse em1993, mas optou por estudar direito).

Biden disse que recentemente vem escrevendo cartas ao seu irmão Beau, que morreu de câncer no cérebro em 2015, episódio que causou um pesadelo de quatro anos na vida de Biden.

“Passei quatro anos viciado em crack. Tive realmente um longo período de vício, e cheguei a um ponto em que não conseguia ler, escrever, pensar. Não faço as coisas pela metade. Isso pode ser um problema”, afirmou ele.

Hunter Biden em seu estúdio de arte, em Los Angeles, em novembro de 2019
Hunter Biden em seu estúdio de arte, em Los Angeles, em novembro de 2019 - The New York Times

Biden se mudou para Los Angeles no começo de 2018, depois de se divorciar de Kathleen Buhle, com quem tem três filhos. Ele também tinha encerrado um relacionamento com Hallie, a viúva de seu irmão.

Em novembro, um processo de paternidade revelou que ele era pai de uma criança pequena; ele conheceu a mãe da criança em Washington. Recentemente, um juiz ordenou que Biden fosse ao estado americano de Arkansas para um depoimento. O advogado da mãe da criança declarou que, entre outras coisas, queria saber se Biden estava ganhando dinheiro com sua arte.

O advogado de Biden disse que seu cliente não estaria disponível em abril, mas o juiz, mencionando documentos judiciais em que Biden se declarava desempregado, determinou que “não parece haver causa suficiente para que ele não dê prioridade a isso”.

Não há provas de qualquer impropriedade da parte de Biden em seus negócios na Ucrânia. Ele se recusou a responder perguntas sobre eles, ainda que, numa entrevista à rede de TV ABC em outubro, tenha admitido imprudência ao aceitar uma função na companhia ucraniana de energia Burisma em 2014, momento em que seu pai, como vice-presidente de Obama, liderava esforços para erradicar a corrupção no setor de energia ucraniano.

Biden, que supostamente recebia US$ 50 mil, ou R$ 261 mil, mensais da Burisma, continuou a ser membro do conselho da empresa até abril de 2019, no final de seu mandato.

Em 2015, ele começou a trabalhar para o oligarca romeno Gabriel Popoviciu, que enfrentava acusações de corrupção. E, no final de 2019, ele renunciou a um posto no conselho de uma empresa chinesa, afirmando que não trabalharia para ou com qualquer companhia estrangeira caso seu pai fosse eleito presidente.

Mas as percepções governam. Mesmo que não tenha violado qualquer lei, Biden fez escolhas questionáveis.

Em seu ateliê, Biden fala sobre seu trabalho, fumando um cigarro eletrônico e olhando para o vazio. Os falcões haviam ressurgido. “Está vendo? São uma família”, disse ele. “Ontem eram três, hoje são quatro. Isso é especial.”

"Pintar aplica minha energia a algo positivo”, ele acrescentou, falando com uma espécie de sabedoria dos recuperados —Biden passou por centros de reabilitação sete ou oito vezes. “Isso me conserva longe de lugares e pessoas que devo evitar”.

“Quero proteger esse lugar. A única coisa que me resta é a arte. É a única coisa que não podem tirar de mim ou misturar a algo mais”, afirmou Biden.

Tradução de Paulo Migliacci

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