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Filme 'Amazing Grace' escancara vidas prévias de Aretha Franklin

Imagens gravadas em 1972 retratam não um concerto, mas um culto, que gerou o disco homônimo da cantora

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Djaimilia Pereira de Almeida

Amazing Grace

Qual o corpo da graça, qual a sua fisionomia? Aretha Franklin ao piano, aos 30 anos, foi em 1972, carapinha dura, nem uma ruga, túnica brilhante. No ministério, ela é pastora, profeta. Aretha purifica. As suas mãos ao piano, os olhos no alto, as suas palavras, nos intimam a ir em frente.

“Amazing Grace”, no filme de 2018, é o concerto filmado por ocasião da gravação do álbum com o mesmo nome, realizado por Sydney Pollack. Não estreou à época devido a problemas de sonoplastia e edição de imagem. Surge agora como um fóssil desenterrado da terra, empoeirado e desbotado.

A gravação é imperfeita. Conserva a memória do erro humano que impediu a estreia do filme. Aretha canta todas as mulheres e todos os homens, Lady Soul, como lhe chama James Cleveland, quando a recebe no palco.

Cena do filme 'Amazing Grace', de Sydney Pollack, em competição no Festival de Berlim de 2019
Aretha Franklin em cena do filme 'Amazing Grace', de Sydney Pollack - Divulgação

E o público aplaude Aretha, a louva, à entrada do Southern California Community Choir, na New Temple Missionary Baptist Church, em Los Angeles, agasalhados com os seus sobretudos coçados, chamados a presenciar a gravação do disco. Como nos livros, parecem não saber ao que vieram, parece que ali entraram por acaso, testemunhas acidentais, apesar de ela ter escolhido cantar ali.

Pollack nos revela a juventude de Aretha. O seu cabelo curto, a garganta, os dentes e o sorriso nos seus olhos, as mãos e a pele das mãos ao piano, mãos tão no começo, que a revelam como mulher, entre nós, e a relacionam conosco.

A sua voz é gravada como um aspecto, um fato, de uma vida humana, pelo qual, mesmo a distância de décadas, nos aconteceu sermos tocados. Sidney Pollack filmou Aretha a par de nós. São as nossas mágoas, as nossas dores, as nossas alegrias o que nos comovem ao ouvir sua voz acompanhar o coro. Ela canta tudo o que nos aconteceu e acontecerá.

O milagre é também esse, para quem se habituou a conhecer Aretha desde sempre madura. Reconhecer nela um começo, anterior ao tempo em que a tomamos por avó, anterior, para muitos, à nossa chegada. Desde sempre quase nunca é desde sempre —também as avós começaram por ser moças. Antes da senhora, houve uma jovem mulher, esta moça, Aretha Franklin, a filha do reverendo Clarence LaVaughn Franklin.

A música soul nos aproxima do divino, mas o alcança nos convidando a pôr o corpo e a alma ao dispor, num enamoramento quase nunca correspondido. A canção redime, mas sob a forma do amante que tarda, da mulher traída, da plantação que fustiga, dos trabalhos e dias dos escravizados, das ancas da mulher da nossa vida ou da mulher do próximo, da alegria mundana.

Emerge no comum, no cotidiano, quer enquanto maldição, quer como sina, quer como vocativo dos nossos lamentos, quer enquanto almofada, ombro amigo, ou par de dança.

Nos preocupamos com ninharias, mas existe alguém que nos ouve para lá da nossa fraqueza. O ouvido constante é à medida da nossa impaciência, que lhe bate à porta com nervosismo e aguarda sem sabedoria, só com ansiedade, de mesa posta e jantar arrefecido, senhor das mulheres maquiadas deixadas à espera, já esborratadas, dos namorados, dos maridos vingativos, da jovem que não sabe como é bonita, dos esfomeados, dos sonhadores, dos perdidos, esquecidos, frustrados pelo mundo e pela ordem das coisas, ou pelo seu lugar.

Aretha foi uma mulher, sofreu como nós. Chegado o novo século, a gravação assinala as suas vidas prévias, de que nos chegou só o rumor. Se a sua voz não tem idade, a presença do seu corpo, em “Amazing Grace”, nos arrebata como revelação e nos leva às lágrimas por tudo quanto na nossa vida nos alegra e entristece.

A graça não reside em Aretha ter sido jovem e bela, não está nos seus 30 anos tão velhos, mas em ter existido enquanto mulher, enquanto Aretha, para lá da sua voz, que não era bem do mundo dos mortais, mas uma voz que soava sem matéria que lhe pertencesse —as canções não saem dela mas através dela.

Não se trata de um concerto, mas de um culto, como lembra James Cleveland, logo no início do filme. Sidney Pollack nos oferece um corpo, o de Aretha, para vestir a graça. Ela está conosco. Não estamos sozinhos, mas na companhia da vida inteira daqueles que viveram antes de nós.

Angolana, Djaimilia Pereira de Almeida é autora de ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’, vencedor do Oceanos de 2019

Erramos: o texto foi alterado

No início do filme, quem aparece para dizer "que se trata de um culto" é James Cleveland, e não  Alexander Hamilton. O texto foi corrigido. 

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