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Filme sobre drogas psicodélicas foge de um debate mais sério

'A Maior Viagem' ajuda a desarmar preconceitos, mas é acanhado ao tratar das pesquisas sobre o tema

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São Paulo

Lançado pela Netflix no Brasil com o título “A Maior Viagem – Uma Aventura Psicodélica”, o documentário de Donick Cary pode contribuir para a normalização das drogas psicodélicas, que mal começou. E ela deve demorar mais que a da maconha, se o foco ficar sobre celebridades e não sobre pesquisadores que impulsionam seu renascimento para a psiquiatria.

Nada contra se divertir ouvindo as histórias de viagens boas e ruins de gente famosa com LSD e cogumelos mágicos. Dá para rir à vontade com o relato, da própria Carrie Fisher, sobre um ônibus de turistas orientais dando com a Princesa Leia topless numa praia escolhida pela atriz para tomar um ácido por ser deserta.

Não terminou em viagem ruim, porque, em seu estado alterado de consciência, ela deu de ombros para as dezenas de máquinas fotográficas. Péssima foi a de Ben Stiller, mas os spoilers param por aqui. O filme se apoia sobre três pernas.

O veio central se abre com entrevistas de celebridades maiores e menores dadas à “psiconáutica”, como o roqueiro Sting, o chef televisivo Anthony Bourdain e gente como A$ap Rocky e Nick Kroll.

Em segundo lugar vêm filmagens supostamente dos anos 1970 a 1990, quando a reação conservadora proibicionista proscreveu substâncias como o LSD e as demonizava com a famigerada fábula de que as pessoas se atiravam pela janela. Algumas sequências de época parecem genuínas, retiradas de arquivos, mas outras parecem reencenadas (o filme não esclarece).

Em terceira e acanhada posição aparece a ciência recente, que dá passos árduos para reentronizar os psicodélicos no arsenal das drogas psiquiátricas respeitáveis. O documentário marca um gol de letra ao entrevistar Charles Grob, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, figurão da área que já colaborou com estudos científicos com ayahuasca no Brasil.

​Problema —a entrevista soa muito acadêmica, e peca por ser a única de um pesquisador. Não faz jus à diversidade de estudos na área, que abrangem terapias contra depressão à base de ayahuasca e psilocibina, ibogaína contra dependência química, MDMA (o ecstasy) contra transtorno de estresse pós-traumático, o TEPT, e por aí vai.

Não faltariam figuras mais interessantes e eloquentes da pesquisa para mostrar no filme. Começando pelo incansável Rick Doblin, que está perto de obter aprovação da agência americana FDA para usar ecstasy e tratar TEPT de veteranos de guerra e vítimas de abuso sexual.

Na ausência de maior densidade científica, fica a cargo de figuras esclarecidas e articuladas como Sting e Bourdain dar a letra sobre os efeitos antidepressivos e ampliadores da consciência dos psicodélicos. São os depoimentos mais interessantes do filme, ao menos para quem estiver em busca de informação objetiva.

Um documentário parrudo também seria mais didático e insistente na demolição de ideias preconcebidas e falsas sobre psicodélicos. E não omitiria que duas de suas estrelas, Carrie Fischer e Anthony Bourdain, morreram cedo, na casa dos 60 anos –embora não se encontrem indicações de que suas mortes tenham decorrido de abuso de drogas, psicodélicas ou não, a informação tem sua relevância no contexto.

A maioria dos países mantêm LSD e psilocibina no rol das drogas perigosas, que supostamente não teriam benefício medicinal, seriam tóxicas e carregariam alto potencial para dependência (nenhuma das três condições encontra apoio na pesquisa empírica).

A obra de Cary optou por fazer gracinhas a respeito. De fato, as imagens de décadas atrás são ridículas em seu alarmismo manipulador, mas só para quem tem experiência com psicodélicos ou acompanha o conhecimento especializado sobre eles.

A coisa é séria. Ri-se muito sob efeito de psicodélicos (excetuadas as eventuais bad trips), e esse relaxamento da psique tem a ver com seu potencial terapêutico, cada vez mais evidente para a ciência.

Chora-se muito, também, como se vê em outro documentário, “Magic Medicine” (medicina, ou medicamento mágico), de Monty Wates, disponível na plataforma Vimeo, sobre três deprimidos graves tratados experimentalmente com psilocibina.

Uma aventura mais profunda e relevante do que as viagens de meia dúzia de famosos.

Centrar atenção nos relatos jocosos de celebridades pode até desarmar preconceitos, o que é bom. Mas também pode ajudar a perenizar a noção conservadora de que se trata de maus hábitos de artistas dissolutos e malucos em geral.

A Maior Viagem - Uma Aventura Psicodélica

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