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Entenda o que perdemos quando um festival como o de Cannes é cancelado

Extinção do evento este ano é como uma página arrancada de um calendário sagrado

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Kyle Buchanan Manohla Dargis A.O Scott
Nova York | The New York Times

O Festival de Cannes foi tirado dos trilhos algumas vezes desde que a sua edição inaugural foi postergada, por causa da Segunda Guerra Mundial.

Desde 1946, no entanto, o show vem continuando. Mas não este ano. Sua 73ª edição, cujo início estava marcado para 12 de maio, foi cancelada. Em vez disso, o festival divulgará em junho uma lista de filmes que foram escolhidos para 2020, o que lhes conferirá o prestigioso selo de Cannes.

Manohla Dargis e A.O. Scott, críticos de cinema do The New York Times, e o colunista de premiações do jornal, Kyle Buchanan, todos veteranos do festival, refletem sobre o que torna o evento deste ano tão essencial para quem ama o cinema.

Kyle Buchanan: Seria um ano de celebração, mas não mais. Depois de uma edição superlativa de Cannes em 2019, com o lançamento de “Parasita”, de Bong Joon-ho –o primeiro vencedor da Palma de Ouro em 64 anos a também conquistar o Oscar de melhor filme—, as expectativas eram imensas para o festival deste ano, marcado para a metade de maio.

Mas já que a pandemia continua a manter o planeta como refém, se tornou impensável levar adiante as duas semanas de festa que atraem famosos do cinema de todo o mundo e os misturam numa multidão na qual todo mundo usa roupas de grife.

Cannes, assim, foi efetivamente cancelado, e os organizadores esperam retomar o evento, ao menos de modo parcial, mais tarde. Manohla e Tony, vocês dois conhecem bem o festival cinematográfico mais prestigioso do planeta. O que perdemos quando Cannes é eliminado do calendário de premiações do ano?

A.O. Scott: Ao contrário dos três grandes festivais do final de ano –Veneza, Telluride e Toronto—, Cannes funciona em separado da temporada do Oscar nos Estados Unidos. O que não equivale a dizer que o festival escapa às jogadas promocionais, mas sim que as jogadas que encontramos nele são mais autocontidas e insulares.

Cannes não precisa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, ainda que abrace a indústria americana alegremente. Por 11 ou 12 dias, o festival se torna um universo em si. Quando você está do lado de dentro, o resto do mundo parece irreal. De fora, o evento parece um estranho globo de neve lotado de astros de cinema.

Mas Cannes importa porque, por trás de todas as poses para fotos, festas em iates e procissões pelo tapete vermelho, há uma devoção quase religiosa ao cinema e um ardor pela arte que nada tem de esnobe ou cínico. Todo tipo de filme é exibido na mostra principal e nos diversos eventos paralelos, e ainda que alguns estejam destinados a conquistar prêmios e a atrair a atenção da imprensa, todos têm ao menos um momento de glória no festival.

Há poucas cenas mais tocantes para mim do que ver um cineasta estreante subindo os degraus do Palais para a sessão de gala de seu filme, percorrendo o mesmo caminho que os ganhadores da Palma de Ouro e que os integrantes do panteão do cinema percorreram um dia.

Não há como encontrar empolgação dessa ordem numa plataforma de streaming; o mesmo vale para a sensação de descoberta repentina que se estende de Cannes ao restante do mundo do cinema. Eu disse antes que existe algo de religioso na coisa toda, e a ausência do festival é como se uma página tivesse sido rasgada de um calendário sagrado. A questão é determinar se essa página poderá ser costurada de volta.

Manohla Dargis: Não tenho dúvida de que Cannes –e a maioria dos festivais, cinemas, filmes e espectadores— vai retornar. Com certeza estou torcendo pelo festival, ao qual compareço há anos, e que amo. Você pode ver alguns dos melhores lançamentos do planeta de uma vez, o que é empolgante, exaustivo e enlouquecedor, porque você quer ver tudo e não há como. E porque o festival traz tantas estreias, você pode descobrir esses filmes por conta própria.

Presumi que “Parasita” seria bom porque, bem, o diretor é quem é. Mas em Cannes eu vi o filme antes que todo mundo mais pudesse me dizer (e repetir, e repetir) o quanto ele é ótimo. Participar é um privilégio, em diversos níveis.

Se é difícil para os americanos compreender a importância de Cannes para o restante do mundo, isso é porque nosso isolacionismo se estende à cultura. Foi empolgante ver “Parasita” decolando nos Estados Unidos, o que aconteceu em parte por causa de Cannes. É uma máquina forte de publicidade, e os milhares de jornalistas que estiveram lá no ano passado ajudaram a despertar o interesse pelo filme em outros festivais internacionais.

A Disney pode dominar os finais de semana de estreia ao explorar os recursos da sua marca. Mas filmes como “Parasita” precisam de festivais, e não acho exagero dizer que eles precisam de Cannes.

Buchanan: Vocês dois estão certos sobre a maneira pela qual Cannes enxerga os filmes de arte. Apesar de todo o glamour do festival, eles são tratados como se fossem um chamado divino. Quando milhares de pessoas vestidas na maior elegância estão assistindo a um filme de arte lento e com três horas de duração, e todo mundo pula para aplaudir de pé no final, você fica imaginando se as palavras para “franquia” e “super-herói” não existem em francês, e se a França não se beneficia por elas aparentemente não existirem.

Mas da mesma forma que a careta Hollywood está passando por um período de desordenamento causado pelo streaming, Cannes enfrenta o mesmo problema, e estou sempre interessado na forma como a tensão entre tradição e progresso se resolve lá. Quer estejamos falando da rejeição do festival à Netflix ou da forma como Cannes lida com o MeToo e a paridade de gênero, as controvérsias na Croisette podem ser instrutivas.

Parece estranho dizer que tenho saudade disso tudo, mas minha impressão é que Cannes serve como um elegante espelho rachado no qual Hollywood se contempla, e sempre parto com uma perspectiva nova sobre aquilo para o que estou retornando.

Scott: Nos dois últimos anos, a querela entre Cannes e a Netflix serviu como um microcosmo picante para as tensões mais amplas dentro da indústria mundial do cinema. A tradição francesa de subsidiar e defender o patrimônio cultural do país costuma ser alvo de zombarias americanas, no setor de cinema e fora dele, mas se eu tiver que escolher entre a França e as companhias de tecnologia americanas com sua vontade de criar monopólios, escolherei a França toda vez.

Mas não existe dúvida de que o streaming como força econômica e cultural foi reforçado pelo coronavírus, e que a questão de se Cannes retornará envolve incertezas e ansiedades maiores sobre o futuro do cinema.

As pessoas irão a Toronto e Veneza em setembro? O Oscar será forçado a fazer as pazes com a Netflix e empresas semelhantes? Ir ao cinema está fadado a se tornar uma empreitada antiquada e restrita a poucos, ou uma aventura envolvendo grande risco? Não acho que eu seja o único cinéfilo a passar por um frisson de medo.

Dargis: Também torço por Cannes. Durante o confinamento, tenho pensado muito sobre ir ao cinema, porque passo tempo demais diante da TV (assistindo a velhos filmes de Hollywood e a um seriado policial britânico). Não há nada como ser confinado em casa compulsoriamente para levar alguém a apreciar a beleza de sair à rua, o que inclui ir ao cinema.

Isso me lembrou que embora, como vocês dois, eu ganhe a vida escrevendo sobre cinema, não escrevo o bastante sobre a experiência de ver filmes nas salas de cinema. Mas deveríamos fazer isso, porque é crucial para a nossa forma de ver e compreender os filmes, e certamente para a maneira como eles nos afetam.

Recentemente entrevistei James Gray, que teve quatro filmes na competição principal de Cannes, entre os quais “O Imigrante”, em 2013. Começamos a falar sobre ir ao cinema e ele disse que, como cineasta, seu objetivo é manter a atenção do espectador. Ou, em suas palavras, “meu trabalho é levá-lo a uma sala de cinema e mantê-lo sentado lá do começo ao fim, sem pensar em ir ao banheiro e sabendo que não tem outra escolha a não ser continuar lá –e essa é a ideia toda de montar tensão dramática”.

Quando você pausa um filme ou começa enviar mensagens enquanto assiste, você transforma o filme em televisão.

Em uma entrevista recente, Thierry Frémaux, o diretor do festival de Cannes, disse que ele "gira em torno de filmes exibidos em salas de cinema”. Eu amei essa declaração.

Há muito a criticar no evento, o que inclui seu compromisso para com certos cineastas horríveis e a negociata que acontece por trás das telas e invariavelmente leva um péssimo filme francês (ou dois) a uma vaga na competição.

Isso posto, Cannes —como todos os bons eventos cinematográficos desse tipo— não é só sobre os filmes. Ele envolve a experiência coletiva, o choro e o riso que nos une durante os filmes, e as conversas sobre eles mais tarde. O que importa é o senso de comunidade, que não existe quando você assiste a um filme na Netflix enquanto espera um delivery.

Assim, eu também defendo os filmes passados em salas de exibição, e também defendo Cannes. Mesmo que eu vaie uma coisa ou outra de vez em quando.

The New York Times, tradução de Paulo Migliacci

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