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Histórias tortas de 'Hotel às Margens do Rio' ecoam Guimarães Rosa

Longa devolve ao cinéfilo a estranha, euforizante sensação de estar entrando no meio de um filme

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“Hotel às Margens do Rio”, que estreou no último fim de semana no Belas Artes à la Carte, devolve ao cinéfilo a estranha, euforizante sensação de estar entrando no meio de um filme.

O que aconteceu antes, afinal? Há um homem que espera por duas pessoas no restaurante de um hotel. Sabemos que se trata de um poeta conhecido, pois a moça que o serve lhe pede um autógrafo. Existe uma moça com uma ferida na mão, aparentemente uma queimadura. O que houve com ela? Existem os dois homens que esperam pelo poeta. Quem são? Por que estão aí?

'Hotel às Margens do Rio'
Cena do filme 'Hotel às Margens do Rio', de Hong Sangsoo - Divulgação

Hong Sang-soo parece, aqui, retomar o projeto de Abbas Kiarostami em seu último filme, de contar uma história que já começa no meio. Se formos pensar bem, toda história começa pelo meio. A convenção é que obriga a lhe dar um início. Aquele que chega no meio de um filme tem um prazer complementar, o de imaginar o que teria acontecido antes. Quando, depois, vemos a primeira parte do filme, não raro percebemos que a história imaginada era melhor do que a narrada pelos autores.

Essa é uma marca das mais fascinantes de certo cinema contemporâneo —as histórias nos chegam tortas, parecendo imprecisas, incompletas, forçando o espectador a se tornar parte da história.

Eis o que se passa em “Hotel às Margens do Rio”. Há um homem hospedado num hotel que espera a chegada de alguém. Quando sai do quarto vemos uma moça entrando em outro, no mesmo andar. Chegando ao restaurante, ficamos sabemos que é um poeta. Logo descobrimos algo mais —que os dois rapazes que o procuram são seus filhos; um deles, cineasta. O pai os abandonou quando o menor ainda era bem pequeno. Quanto às moças, é melhor não dizer mais nada. O “spoiler” aqui não consiste em contar o final, e sim o que aconteceu antes.

Esse grupo de personagens se encontrará e se perderá ao longo de um dia em que conhecemos um pouco de seu passado e desfrutamos de seu presente desencontrado.

A horas tantas, uma das moças se refere a Byung, o filho menor do poeta, dizendo se tratar de um cineasta ambíguo. Parece, no caso, estar fazendo alusão ao próprio Hong Sang-soo e, mais precisamente, a “Hotel às Margens do Rio”. Pois aqui navegamos entre a neve no exterior e o calor do restaurante ou dos quartos; entre o masculino e o feminino; entre passado e futuro; entre a noite e o amanhecer —mas navegamos (ou flutuamos) sempre como se estivéssemos, a exemplo do estranho, insuperável conto de Guimarães Rosa, numa terceira, impossível margem do rio.

Como o conto, o filme é misterioso e admirável. Tem o interesse adicional de dar seguimento a uma linhagem de cinema que vem de Hawks e Renoir, passa por Ozu, Eric Rohmer e Abbas Kiarostami —um cinema do cotidiano, em que não raro as pequenas, insignificantes histórias são mais atraentes e cheias de vida do que as grandes sagas. E aqui, no caso, quando chegamos ao fim da historia, sabemos muito bem o que acontece, mas a intriga ainda nos intriga. Por que tais coisas aconteceram, afinal? E mais, o que acontecerá a seguir, pois a conclusão é ao mesmo tempo conclusiva e seu inverso. Ambígua, em uma palavra.

À margem do filme existe ainda algo a dizer. Até algumas semanas atrás só se pensava em estrear um filme em streaming se ele fosse ruim ou se produzido pela Netflix em pessoa. A quarentena começa a alterar essa rotina. O Festival Varilux, por exemplo, está sendo em streaming, como foi o festival É Tudo Verdade. A distribuidora Arteplex prepara agora um festival de pré-estreias em streaming. Cinematecas como a francesa e a portuguesa exibem filmes de seu acervo em streaming.

São fatos que acontecem impulsionados pela quarentena. Quanto ao futuro, ninguém pode ter certeza alguma. Timidamente (mas parece que cada vez menos) o Belas Artes vai transferindo suas estreias para o novo meio.

“Hotel às Margens do Rio” é o primeiro lançamento de maior alcance. Lança tantas questões quanto o próprio filme. Por exemplo, isso arruinará o lançamento em cinemas. Mas também, haverá lançamento em cinemas? Estará o espectador (em especial o assinante do Belas Artes à la Carte disposto a pagar mais para ver em casa um lançamento, mesmo um do mestre sul-coreano?

Enfim, eis um momento em que nosso futuro parece estar tão em suspenso, tão ambíguo em relação ao cinema e tudo mais, quanto o presente e o futuro das personagens deste filme. Dele ninguém dirá que é pouco adequado ao momento.

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