Humoristas vão se adaptar ao pós-pandemia antes dos outros, diz Jerry Seinfeld

Prestes a estrear especial da Netflix nesta terça (5), comediante fala sobre coronavírus e seu futuro no stand-up

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Dave Itzkoff
Nova York | The New York Times

Nas últimas semanas, muita gente tem imaginado o que Jerry Seinfeld, o personagem da sitcom "Seinfeld", faria na atual era de quarentenas domésticas e de distanciamento social.

As pessoas imaginam de que forma o temperamento exigente demais, a obsessão consigo mesmo e o escrutínio constante de detalhes cotidianos (para não mencionar os traços hiperbólicos de seus amigos e vizinhos na ficção) do protagonista se distenderiam extraordinariamente num ambiente de isolamento e ansiedade.

No entanto, o Jerry Seinfeld real —que abandonou a série de TV muito tempo atrás para se concentrar num programa ocasional de entrevistas e numa carreira incomparável no stand-up— não é aquele cara.

Embora esteja se protegendo contra a pandemia, em companhia da mulher, Jessica, e dos três filhos do casal, ele continua dedicado aos seus rituais e hábito diários e inescapavelmente propenso a observações minuciosas do comportamento humano.

Mas também é autoconsciente de uma maneira que jamais vemos nas suas apresentações de humor. Ele faz brincadeiras e imediatamente para a fim de pensar se são apropriadas, ou mesmo se as pessoas querem rir num momento como este. São questões difíceis de encarar se você é humorista e, como todo mundo, Seinfeld está tentando calcular quem ele é e o o que deveria estar fazendo agora.

Ainda que prefira se apresentar em público com o traje clássico dos humoristas stand-up, terno e gravata, Seinfeld apareceu na quarta passada usando um moletom simples, com a palavra “Garage”, garagem em inglês, numa conversa por Zoom de sua casa nos Hamptons.

Era o 66º aniversário do humorista, e a conversa por vídeo demorou alguns minutos para funcionar, exigindo a intervenção de Sascha, 19, filha do humorista, que entende muito mais do que ele sobre tecnologia. (“A juventude dos Estados Unidos”, disse Seinfeld, sorrindo com orgulho paternal.)

Sentado em uma sala decorada com fotos de família, livros, miniaturas de carros e uma cópia de “My Son, the Nut”, disco de comédia de Allan Sherman, Seinfeld falou sobre a evolução de seus sentimentos com relação ao humor, seu poder e suas deficiências num momento como o atual.

Nesse mesmo sentido, ele também falou sobre o seu novo especial para a Netflix, “23 Hours to Kill”, que será lançado nesta terça (5). Seinfeld sabe que seus gracejos sobre as pequenas indignidades dos eventos públicos, sobre a comunicação via internet e sobre os correios podem ter um impacto muito diferente agora do que quando foram gravados, em outubro, no Teatro Beacon de Manhattan.

"Jerry Seinfeld: 23 Hours to Kill" da Netflix
Cena do especial "Jerry Seinfeld: 23 Hours to Kill" da Netflix - Jeffery Neira/ Netflix

Seinfeld disse não saber se o especial seria sua despedida do humor televisivo, mas descreveu sua perspectiva profissional mais ampla com o termo “pós-show business”. “Agora, o que me interessa é a pura arte da coisa”, ele explicou. “O texto, a audiência e o momento. Isso me interessa mais que nunca, mas estou menos interessado em tudo mais.”

Seinfeld discorreu ainda sobre suas reflexões na quarentena, sua necessidade de manter uma rotina e sobre que ele espera ver acontecer no ramo da comédia em Nova York, quando a crise terminar. Abaixo, trechos editados da conversa.

Quando a pandemia começou a parecer séria para você?
Eu soube na hora. Liguei para o produtor de minhas turnês e disse para ele se preparar para começar a cancelar shows. Foi como fugir de um tsunami. Vamos correr para as colinas. Mas adaptabilidade é parte dos requisitos, nesta profissão. Você se torna altamente adaptável, a tudo. E essa é só algo a mais a que é preciso se adaptar.

Mas não é mais difícil, por não sabermos quando vai terminar?
Mas sabemos. Com certeza sabemos.

Quando?
Bem, vou apostar naquilo que é seguro. Eu apostaria no vírus. Você consegue imaginar como as outras doenças têm inveja desse negócio de duas semanas sem sintomas? Tipo, a poliomielite. “Imagine o que eu poderia ter sido se tivesse pensado nisso.” A varíola. “Minha carreira poderia ter sido muito melhor.”

Ou seja, você descobriu que ainda consegue fazer humor, nesse momento?
Na verdade, não. Não me sinto assim tão engraçado. A doença está ferindo tanta gente, é brutal. Não estou no clima certo para ser engraçado. É como ser um pássaro e de repente mudam a sua gaiola. Você fica sem ter certeza de onde está.

Você tem a reputação de ser maníaco por limpeza. Sente que esse traço foi validado, agora?
Não tenho fobia de germes. O que me interessa mais são rotinas de comportamento organizado. Sim, guardo minha pasta de dente no mesmo lugar todas as vezes. Não tenho um distúrbio obsessivo-compulsivo, mas amo a rotina. Você não passa de um animal treinado em um circo. Gosto desse sentimento: é hora de fazer esse truque, e depois aquele truque. Essas coisas fazem com que eu me sinta melhor. Não quero liberdade mental demais. Já tenho um excesso de liberdade, de todo modo.

Existe alguma parte da sua rotina que outras pessoas poderiam considerar útil, agora?
A primeira coisa que eu faço é passar água no rosto. Aprendi isso no filme “Desafio à Corrupção”, com Jackie Gleason e Paul Newman. É como eu mudo de modo, passo do deitado ao em pé. É parecido com a Broadway. A cortina precisa ser fechada entre o primeiro e o segundo ato. Para mim, passar uma água no rosto serve para isso. E aí olho meu rosto no espelho, com a água escorrendo dele. E então [ele bate palmas]: “Tudo pronto, vamos lá”. Quero ficar com cara de Muhammad Ali num daqueles livros de fotografias.

Como outros pais, você está achando difícil ter as crianças por perto o dia todo?
Temos algumas dificuldades, mas gosto do tempo a mais que passo com eles. Meus filhos são adolescentes e normalmente quase não os vejo —nem faço ideia de onde estão ou do que estão fazendo. Agora, sinto que realmente estou descobrindo quem são. Os adolescentes querem tão desesperadamente escapar de seus pais e não querem que os pais descubram quem eles se tornaram. Lembro disso nos meus anos de adolescência. Você quer deixar o passado para trás e adotar uma nova personalidade, que acabou de imaginar.

Eles estão ajudando, apresentando novas mídias sociais e tecnologias para você?
Ah, não. Sou muito curioso, mas passa rápido. “O que é TikTok?” Dou uma olhada. “Ok, entendi.” A coisa que mais me diverte é debater com eles sobre por que algo não é engraçado e por que algo é engraçado. Retuitei um vídeo de uma humorista chamada Sarah Cooper. Ela usou uma gravação de Trump falando em injetar detergente e encenou a coisa. Eu disse que “o motivo para que isso seja engraçado é que ela não acha que está sendo engraçada". Se você acha que está sendo engraçado, a coisa é menos engraçada para quem está na audiência. Quando você fala completamente a sério, a coisa é muito mais engraçada. Você não a vê curtindo o que está fazendo —ela faz porque precisa fazer. E é isso que é engraçado. E meus filhos sacaram, eles entenderam. É esse o tipo de conversa que adoro ter com eles.

Você está ansioso por voltar ao palco, depois de tantas semanas?
É mais ou menos como sentir falta dos amigos. Eu adoraria estar com eles, mas não posso. É preciso aceitar. Ainda me sento para escrever a cada dia. É outra coisa que ajuda a organizar os pensamentos. O café fica aqui. O bloco fica lá. As anotações ficam acolá. Minha técnica para escrever se limita a: você não pode fazer qualquer outra coisa. Pode ser que não consiga escrever, mas não pode fazer qualquer outra coisa naquele horário. Escrever é um tremendo sofrimento. A rotina me sustenta.

Você se preocupa com a possibilidade de que o stand-up não volte a ser o que era, que as plateias não retornem, diferentemente do que aconteceu em crises passadas?
Não há chance de isso acontecer. As pessoas vão voltar, antes de tudo porque o riso é a maior sensação de alívio que existe. E em segundo lugar, os humoristas vão se adaptar muito mais rápido do que todo o resto das pessoas. Os programas de TV não vão saber direito o que fazer. O pessoal do cinema talvez não saiba o que fazer. Os humoristas, em três noites vão descobrir. Porque você tem aquele feedback imediato sobre o que funciona e o que não funciona.

Você consegue se imaginar fazendo um show online?
Não. Não gosto dessa ideia de show business caseiro. Não gosto de shows caseiros. Não é que eu não assista. Eles são OK. E acho que é bacana que as pessoas estejam tentando fazer isso. Mas não é o que eu quero fazer. Gosto de usar o terno, e de ter o público, a energia, a fagulha —gosto da magia. Não quero saber quem um artista é de verdade. Não quero ver como ele vive. Estamos todos cansados de ver as casas das pessoas. Elas são todas deprimentemente normais. E, quanto melhor for a pessoa, mais mal cuidada vai parecer a casa. Porque a pessoa vive ocupada demais para cuidar disso. As únicas pessoas que têm casas verdadeiramente fabulosas são péssimas. São horríveis naquilo que fazem. Gastam seu dinheiro com suas casas, em lugar de se concentrarem na arte.

Você quis fazer alguma mudança no seu especial de stand-up antes do lançamento, para o caso de algumas das falas pegarem as pessoas de um jeito diferente, agora, do que quando o show foi gravado?
Fico sem saber se as pessoas vão achar mais difícil rir agora. Há uma tristeza generalizada, uma tristeza de base, por nossa espécie estar sob ameaça. Não há como não sentir alguma tristeza sobre isso. O riso, quando vier, será uma sensação ótima. Mas pode ser mais difícil chegar lá. Estávamos preparando o trailer, e havia uma cena em que me queixava sobre os pratos especiais em um restaurante. E pensei que não tinha como anunciar o programa com aquilo. Não podia me queixar daquilo. Não ia causar a impressão certa.

No especial, você diz que as pessoas amam Nova York especificamente porque é uma cidade lotada e desconfortável. Isso parece especialmente pungente, agora?
Não. Se você ama a cidade, vai continuar a amá-la. Eu estava conversando com alguém ontem, e a pessoa disse a palavra “Williamsburg”. Fiquei com uma vontade desesperada de ir a Wiliamsburg. Sinto muita falta da cidade. O agito da cidade —foi adiado, digamos.

Você lamenta ter dedicado tanto tempo do especial a zombar do correio?
Sim, lamento um pouco. Mas é engraçado. É todo um conceito em torno de caminhar, lamber e um número estranho de centavos. Isso ainda é engraçado.

Boa parte do seu humor é construído a partir de observações de maneiras pelas quais as pessoas interagem. Todas essas observações perdem o valor, com a mudança drástica nas formas como interagimos? Você tem, sei lá, 15 minutos de material sobre apertos de mãos que jamais vai poder voltar a usar?
Não tenho, mas se tivesse estaria incomodado com isso. O trailer do especial foi rodado na primeira semana de março. Ainda não estávamos mantendo os dois metros de distância, mas foi a primeira vez que me vi em um grande grupo de pessoas e ninguém trocou um aperto de mão. Ninguém tocou ninguém e, no final do dia, a sensação era de frieza. E eu nem gosto de apertos de mão. Mas depois de trabalhar o dia inteiro com um grande grupo de pessoas, fui embora claramente sentindo falta de alguma coisa.

O que o inspirou a começar o especial com uma cena de ação na qual você pula de um helicóptero no rio Hudson?
Sessenta e cinco anos! Quem faz isso com 65 anos? Se houvesse alguma estaca fincada no fundo do rio no ponto em que pulei, seria um desastre. Foi legal. Foi assustador. E impressiona o público. A brincadeira com o helicóptero veio do título. Quando pensei em “23 Horas para Matar”, que parece o nome de um filme de James Bond, decidi fazer uma abertura desse estilo.

Gravamos no final de agosto, para a água estar quente. Eu estava no helicóptero com o coordenador de dublês. Estávamos a mais ou menos quatro andares de altura sobre o rio Hudson. Eu estava sentado na porta, me preparando para saltar, e perguntei para o cara: “Algum outro ator já faz isso?” Ele disse que estava no ramo há 30 anos, e não conhecia nem mesmo um dublê que tivesse feito aquilo. Mas um dublê fez o salto antes de mim. Eu estupidamente achei que seria fácil. Não sei por que pensei isso. Não é fácil.

Por que era importante para você fazer o salto?
O especial todo era muito pessoal para mim —um documento do que sou e do que fiz com a minha vida. Era o que eu queria que ele fosse. Não sou grande fã de ver gente muito velha na televisão. Não queria ser uma dessas pessoas. Por isso, pus tudo que tinha no especial. Também achei que minha idade era um lado engraçado da coisa. Ter 65 anos e ainda fazer algo assim absurdo —aquilo era parte do que desejo seja minha assinatura. Que eu continuo tentando fazer coisas ridículas, até o fim.

Você sente estar chegando ao final de alguma coisa, profissionalmente?
Um pouco, sim. Eu estou vivendo —como dizer isso?— num modo pós-show business, agora. Trabalhei no show business. E amo o show business. Mas ficou para trás. Não quero mais jogar, ou mesmo entender, aquele jogo. Não me interessa mais.

Você imagina que esse possa ser o seu último especial de stand-up?
Não sei. É a impressão que tenho. Gosto de caras como Cary Grant, que não passaram de um certo ponto no cinema. Ao vivo é diferente –vou me apresentar para sempre. Mas diante das câmeras... Chega um ponto em que, não sei. Veremos quando chegar a hora.

A pandemia redespertou seu senso de orgulho cívico?
Sim. Uma das minhas coisas favoritas no especial é quando agradeço o público no final por me fazer o que sou. Porque na minha cabeça, ao olhar para aquela plateia, eles representam todas as plateias de Nova York para quem me apresentei, desde os 20 anos. As pessoas que fizeram de mim o que sou. E a cultura da cidade, quando eu estava crescendo, que deu forma à minha visão, ao meu humor e à minha atitude. Sinto uma imensa dívida para com Nova York. Fiquei muito feliz de poder dizer isso publicamente, já que é algo que sempre senti. O que quer que eu tenha contribuído para Nova York, quero dizer a Nova York que o sentimento é mútuo. Tenho zero dúvida de que a cidade vai se recuperar. Zero dúvida.

Estamos conversando no dia do seu 66º aniversário. É um marco especial para você? Vai fazer alguma coisa empolgante para celebrar a ocasião?
Não. Não é um número que me interesse muito. Jess está fazendo ziti no forno. Isso sim é grande coisa.

Tradução de Paulo Migliacci

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