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Polarização política contamina avaliação de filmes e gera discurso de ódio

Estudo de grupo da USP analisou os longas brasileiros que mais dividiram as opiniões no portal de cinema IMDB

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São Paulo

Foi no Festival de Berlim do ano passado. Numa sessão para a imprensa, surge na tela a imagem do cantor Seu Jorge interpretando o guerrilheiro baiano Carlos Marighella. O filme termina sob aplausos e, na mesma época, começam a chegar ao Internet Movie Database —ou IMDB, um acervo de produções audiovisuais que também permite aos usuários dar notas a filmes e séries— milhares de avaliações raivosas para o filme.

Não, os jornalistas e críticos presentes nas exibições de “Marighella” não se arrependeram das palmas batidas. As pessoas que avaliavam o filme de Wagner Moura online, na verdade, não tiveram a oportunidade de ver o longa.

Figura controversa da ditadura militar, Marighella contaminou o trabalho de Moura com a polêmica que sempre acompanhou seu nome. Uma leva de gente se enfureceu com a mera existência de uma cinebiografia do guerrilheiro de esquerda e criou um verdadeiro exército para atacar o longa.

Mais de um ano depois, “Marighella” ainda não teve uma estreia comercial e foi exibido poucas vezes. Mesmo assim, sua página no IMDB ostenta a nota três, de um máximo de dez, numa média gerada a partir das avaliações de 42.588 frequentadores do site.

Mas tramas consideradas de esquerda não estão sozinhas nas verdadeiras cruzadas que mobilizam as pessoas para detonar a imagem virtual de qualquer filme político. Longas de direita também enfrentam a ira de uma internet cada vez mais polarizada.

É isso que evidencia um estudo do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da Universidade de São Paulo. Liderada pelo pesquisador em ciência de dados Leonardo Zeine, o cientista da computação Márcio Ribeiro e Pablo Ortellado, colunista deste jornal, a pesquisa se debruçou sobre os 15 filmes nacionais que mais dividem a opinião no IMDB. Na lista aparece, claro, “Marighella”.

Na pesquisa, o trio coletou, em janeiro, as notas atribuídas a todos os filmes brasileiros listados no site e produzidos entre 1931 e 2019. A condição para participar da análise era que o título tivesse pelo menos cem avaliações.

A essa lista foi aplicado o chamado índice de polarização, desenvolvido pelo grupo, e que identificou quais eram os longas com as notas mais concentradas em polos opostos.

“O IMDB deixa uma parte de seus dados abertos, então você tem acesso a planilhas com algumas informações. O problema é que, nelas, os filmes não estão classificados por país”, afirma Zeine. “O que a gente fez, então, foi criar um programa, um robô, que simula um usuário para poder identificar os filmes que buscávamos.”

Além de “Marighella” –em sétimo lugar–, aparecem na lista os associados à esquerda “Democracia em Vertigem” –12º–, documentário sobre o impeachment de Dilma Rousseff indicado ao Oscar, e “Que Bom Te Ver Viva” –15º–, sobre mulheres que lutaram contra a ditadura militar.

Já alinhados com os interesses da direita estão “Bonifácio: O Fundador do Brasil” –o primeiríssimo–, “O Jardim das Aflições” –em quarto–, “1964: O Brasil entre Armas e Livros” –nono– e “Polícia Federal: A Lei É para Todos” –13º. Engrossam a lista os religiosos “Nada a Perder 2” –em segundo–, “Os Dez Mandamentos” –terceiro–, “Nada a Perder” –quinto– e “Milagre” –décimo. Vários deles têm alguma relação com Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro.

“Como se Tornar o Pior Aluno da Escola”, fruto da mente de Danilo Gentili, aparece em 11º lugar e gerou polêmica quando foi lançado por seu tom politicamente incorreto. E, sem qualquer relação com bandeiras de direita ou de esquerda, completam o ranking “Inspetor Faustão e o Mallandro” –em sexto–, “Diário de um Exorcista - Zero” –oitavo– e “Eu Fico Loko” –14º.

“Esses três são casos engraçados, porque parecem estar na lista por uma divergência estética, de conteúdo mesmo”, diz Zeine. “Parece que há pessoas que gostam deles por considerarem trash.”

Mas, na avaliação da crítica especializada, o consenso é que os três são mesmo ruins. No caso de “Eu Fico Loko”, a trama narra a história de Christian Figueiredo, influencer com uma ampla base de fãs que deve, também, ter se mobilizado para elogiar o longa no IMDB.

Quanto à presença na lista dos outros 12 filmes, que flertam com religião e política, Zeine lamenta. “Eu acho triste eles serem alvo da polarização política que tem crescido no país, porque com isso a experiência cinematográfica é enfraquecida”, afirma.

“Parece que as pessoas precisam muito mais buscar uma identidade própria na tela do que simplesmente assistir a um filme. Se fala muito pouco de estética, de arte, e muito mais da política. E de um jeito atrofiado, não é nem um debate substancial. E isso cria um antagonismo barato, fraco, sem debate.”

O fenômeno, no entanto, não é exclusivo da cada vez mais polarizada sociedade brasileira. Lá fora, o IMDB e outros sites que compilam avaliações de cinema também foram alvo de sabotagem por parte de pessoas avessas a temáticas abordadas em cena.

Nos últimos anos, blockbusters têm abraçado cada vez mais a diversidade. E diversidade pode desagradar muita gente. Foi isso que superproduções como “Pantera Negra”, “Capitã Marvel” e “Star Wars: Os Últimos Jedi” provaram quando foram lançados.

O primeiro atraiu a ira dos racistas por seus heróis negros. O segundo, a dos machistas por sua protagonista mulher. Já o último trouxe um combo das duas coisas, com a aspirante a jedi Rey e o ex-stormtrooper negro Finn no centro da trama.

Quando estrearam, os longas, todos da Disney, foram alvo de campanhas virtuais ferrenhas que queriam boicotar as obras sem ao menos ter visto nenhuma delas. Diante das boas avaliações da crítica e do sucesso que títulos das franquias fariam, resolveram manchar a imagem dos filmes em agregadores de críticas.

Grupos raivosos conseguiram enfiar milhares de avaliações negativas no Rotten Tomatoes, plataforma de prestígio que orienta muita gente na hora de escolher o que ver no cinema. No caso de “Pantera Negra”, chegaram até mesmo a criar eventos no Facebook em que conclamavam outros a dedicarem um dia de suas vidas a sabotar o título da Marvel.

À época, o agregador de críticas enviou uma declaração ao portal The Wrap. “Nós no Rotten Tomatoes temos orgulho de termos nos tornado uma plataforma para fãs apaixonados debaterem e discutirem entretenimento e levamos essa responsabilidade a sério. Ao mesmo tempo em que respeitamos as opiniões diversas de nossos fãs, não perdoamos discursos de ódio”, dizia a nota.

No ano seguinte, com a estreia de “Capitã Marvel”, o Rotten Tomatoes eliminou milhares de comentários negativos a respeito do filme que foram identificados como sabotagem. Para provar que havia preconceito embutido nas avaliações, o site destacou que, em poucas horas, o longa recebeu mais cotações do que a maioria dos blockbusters costumam receber em um mês.

Segundo o pesquisador Leonardo Zeine, o fenômeno das campanhas de ódio na cultura é amplo e extrapola fronteiras. “Nos últimos 15, 20 anos, a gente tem visto crescer, nas pessoas, a necessidade de defender uma causa. Estamos em um jogo de identidades e o campo da cultura tem sido impregnado por isso. É uma polarização pobre e muito intensa."

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