À beira da falência, conseguirá o Cirque du Soleil sobreviver ao coronavírus?

A companhia já está conversando com seus parceiros na Coreia do Sul e na China sobre a retomada de espetáculos

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Dan Bilefsky
Montreal | The New York Times

Até que surgisse a pandemia do coronavírus, a contorcionista Uranbileg Angarag, da Mongólia, deslumbrava os espectadores a cada noite nos shows do Cirque du Soleil em um navio de cruzeiro, contorcendo seu corpo até formar uma bola e se equilibrando sobre uma haste vertical que ela segura com a boca.

Nos últimos 50 dias, porém, Angarag, 26, está trancada em uma cabine apertada ao largo da costa da Itália, se exercitando como pode e conversando com pessoas em vídeo pelo WhatsApp, sem saber quando o famoso circo voltará a se apresentar.

“Por sorte estou acostumada a contorcer meu corpo em espaços apertados”, ela disse, do navio em que está confinada desde que o espetáculo foi suspenso, em março. “Mal posso esperar para voltar ao Cirque, mas não temos ideia de quando o mundo estará pronto para voltar a ver apresentações ao vivo.”

Da Broadway às arenas de esporte, a pandemia paralisou o mundo do entretenimento ao vivo, que inclui o Cirque du Soleil, de Québec, um gigante do setor.

Em poucas semanas, a organização foi forçada a suspender 44 espetáculos em dezenas de cidades, de Las Vegas a Hangzhou, na China, e dispensou temporariamente quase 5.000 empregados —95% da sua força de trabalho—, além de suspender os pagamentos a dezenas de criadores de shows.

Mesmo antes da pandemia, a companhia estava enfrentando problemas devido ao crescimento excessivo e à fadiga criativa, depois de ter sido adquirida por um consórcio liderado por um grupo americano de capital privado em 2015 e de acelerar uma expansão mundial alimentada por endividamento cada vez mais alto.

Agora, diante da falta de perspectivas sobre o desenvolvimento de uma vacina para o coronavírus ou sobre a data em que as cidades voltarão a permitir aglomerações públicas, há quem esteja questionando se o Cirque du Soleil conseguirá sobreviver.

“Ninguém jamais calculou o que faríamos se perdêssemos 100% de nossa receita”, disse Mitch Garber, o presidente do conselho do Cirque du Soleil, comparando a pandemia à Grande Depressão, no ramo do entretenimento ao vivo. “Não temos como funcionar sem fãs.”

O Cirque du Soleil receberá US$ 200 milhões, cerca de R$ 1 bilhão, em assistência do governo da província canadense de Québec, como parte dos esforços mais amplos para reanimar e manter ativo o grupo internacional de entretenimento sediado em Montreal.

O grupo também está estudando opções de reestruturação que incluiriam um possível pedido de concordata. Pierre Fitzgibbon, o ministro da Economia da província de Québec, disse que o governo tinha chegado a um acordo em princípio sob o qual adquiriria uma participação majoritária no Cirque du Soleil se o grupo TPG e o conglomerado chinês Fosun International, os dois principais acionistas atuais, decidirem abandonar o investimento.

É difícil superestimar a importância que o Cirque du Soleil tem para a imaginação canadense e mundial.

O circo sediado em Montreal surgiu na década de 1980, quando um grupo de artistas de Québec, acrobatas e engolidores de fogo, entre os quis Guy Laliberté, o acordeonista que foi um dos fundadores do grupo, deliciavam os moradores locais em apresentações realizadas à margem do rio Saint Lawrence.

O grupo nascido em 1984 não tinha animais em cativeiro e oferecia uma mistura de acrobacias deslumbrantes, dança, figurinos luxuosos, música ao vivo, recursos cênicos de alta tecnologia e fantasia narrativa, e criou uma nova visão sobre o que um circo deve ser.

Antes do surto do coronavírus, os sete shows que o grupo tinha em cartaz em Las Vegas, entre os quais “Ka”, muito elogiado pela crítica e incluindo cenas de combate a 20 metros de altura, e “O”, um espetáculo de dança aquática, atraíam cerca de 10 mil espectadores por noite. O grupo teve faturamento superior a US$ 1 bilhão no ano passado —embora também tenha dívidas de quase US$ 1 bilhão.

Hoje, o ateliê de figurinos do circo em Montreal, que ocupa todo um quarteirão e onde o ritmo de atividade costumava ser frenético, com a produção de quase 18 mil peças de figurino cuidadosamente costuradas a cada ano, parece fantasmagoricamente vazio. Perucas incompletas e máscaras abandonadas se espalham pelas bancadas de trabalho, em meio a copos meio vazios de chá.

Gabriel Dubé-Dupuis, o diretor de criação de dois dos espetáculos recentes do Cirque du Soleil, “Cosmos” e “Exentricks”, trabalha para o circo há 23 anos; seu pai foi um famoso palhaço no circo. Ele disse que a companhia lhe deve dezenas de milhares de dólares.

“Esse é um negócio no qual os artistas de circo arriscam o pescoço a cada noite, e se as pessoas não são pagas, isso gera uma crise de confiança”, ele disse.

Em 18 de março, o serviço de classificação de crédito Moody’s Investor Service rebaixou a classificação dos títulos de dívida do Cirque du Soleil para um grau próximo do especulativo, mencionando o “alto risco” de que a empresa venha a deixar de pagar suas dívidas. A Québecor, uma gigante das telecomunicações de Québec, expressou interesse em adquirir o circo, mas sua proposta foi recebida com frieza.

Laliberté, o sujeito brincalhão e amante do pôquer que se tornou bilionário com a venda do circo que ajudou a criar, expressou a possibilidade de participar de uma “luta livre” para resgatar a organização. Mas pessoas informadas sobre as conversações quanto ao futuro do Cirque dizem que ele vendeu suas ações na empresa e que é improvável que as recompre.

Daniel Lamarre, o presidente-executivo do Cirque du Soleil, disse que acreditava inicialmente que a crise de saúde seria contida na China, onde a organização foi forçada em janeiro a suspender seu mais recente espetáculo, “The Land of Fantasy”, em Hangzhou, que deveria ter sido a pedra fundamental para a expansão no mercado chinês que era um dos principais objetivos do grupo.

Mas, no começo de março, recorda ele, minutos depois de uma reunião em Montreal sobre a crise, cidades de todo o planeta começaram a suspender os espetáculos públicos. Com o fechamento das fronteiras, o Cirque du Soleil teve de correr para carregar seus equipamentos em aviões de transporte gigantescos e repatriar 2.000 de seus empregados.

“Nosso mundo mudou da noite para o dia”, disse Lamarre. “Quando recebi o telefonema em 14 de março me informando que teríamos de suspender nossos sete espetáculos em Las Vegas, tive de aceitar essa nova realidade.”

Lamarre disse que a empresa está considerando todas as alternativas, entre as quais pedir concordata. Uma recente injeção de US$ 50 milhões de seus acionistas propiciou um prazo adicional para buscar saídas.

O executivo se declarou otimista quanto à recuperação da companhia, com base em sua marca fortíssima e no interesse reforçado que o público terá por espetáculos ao vivo, depois de meses de confinamento. O Cirque du Soleil já está conversando com seus parceiros na Coreia do Sul e na China sobre a retomada de espetáculos.

Enquanto isso, Lamarre tem coisas novas para ler: estudos sobre vacinas contra o coronavírus.

“Provavelmente vai demorar mais ou menos um ano para que as coisas voltem ao normal”, ele disse.

Mas, apesar de todo o seu otimismo, alguns críticos dizem que os problemas do Cirque du Soleil surgiram antes da pandemia e que sua inspiração artística revolucionária deu lugar a histórias simplórias e a espetáculos cafonas, por exemplo acrobatas com fantasias de sapo.

Em 2015, Laliberté, que se tornou o primeiro canadense a fazer turismo no espaço em 2009, vendeu sua participação majoritária na empresa a investidores liderados pelo grupo de capital privado TPG Capital, dos Estados Unidos, por US$ 1,5 bilhão. Os outros acionistas do Cirque são a companhia chinesa de investimento Fosun e um fundo de pensões de Montreal.

A companhia gastou US$ 550 milhões, ou R$ 2,8 bilhões, em aquisições, desde então, criando novos espetáculos e renovando as produções existentes.

Mas, embora triunfos como a remontagem de “Allegria”, um clássico do Cirque du Soleil, tenham encantado, a empresa também passou por grandes tropeços, entre os quais uma incursão malfadada a Nova York.

“R.U.N.”, um espetáculo cujo desenvolvimento custou US$ 60 milhões, encerrou sua temporada em Las Vegas em março depois de só cinco meses, prejudicado por coreografias e cenas de combate banais.

“Nos últimos anos, houve uma virada na direção do lucro, de preferência à criatividade”, disse Dubé-Dupuis, o veterano do Cirque du Soleil.

Agora, um reposicionamento parece inevitável.

“Não sabemos como o Cirque vai conseguir ganhar dinheiro, ou não perder muito dinheiro, se um quarto dos assentos dos teatros estiverem vazios”, disse Garber.

A pandemia também criou um desafio para o pequeno exército de artistas circenses altamente talentosos da companhia.

“Não existem muitos anúncios no LinkedIn em busca de contorcionistas desempregados”, observou Garber.

Um grupo de artistas do Cirque du Soleil recentemente produziu um vídeo comovente sobre a vida em confinamento, mostrando um dançarino gritando de raiva com as más notícias vistas na TV e um mímico tentando desesperadamente escapar de casa.

Angarag, a contorcionista, vinha se apresentando em dois espetáculos do Cirque du Soleil a bordo do MSC Grandiosa, um navio de cruzeiro, há quatro meses, antes que o fechamento de fronteiras a confinasse à sua cabine. Ela passa o dia lendo livros de autoajuda, fazendo ioga, e treina por até três horas diárias.

O confinamento cria outras dificuldades.

Olivier Sylvestre, 29, demorou uma década para dominar sua “roda alemã”, dois aros gigantes, conjugados, em que ele se desloca com a graça e força de um bailarino. Mas não é prático usar a roda dentro do apartamento, e ela está guardada no armário há meses.

“Estamos desesperados para voltar aos espetáculos”, ele disse. “O Cirque faz com que as pessoas sonhem, e elas precisam disso mais que nunca.”

Tradução de Paulo Migliacci

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