Alguém vai querer consumir arte sobre a pandemia depois que ela acabar?

Exemplo do pós-guerra e psicologia do trauma ajudam a entender como vamos lidar com o coronavírus na cultura

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Não são poucas as razões para querer deixar o coronavírus para trás.

Só no Brasil, já são mais de 41 mil mortos e um número muito maior de familiares enlutados. Mesmo quem não foi infectado amargou a clausura de casa e o medo do contágio. A vontade de superar isso tudo impulsiona, aliás, um movimento de reabertura de espaços públicos que boa parte dos especialistas julga prematura.

Ao mesmo tempo, é certo prever que haverá uma enxurrada de obras de arte sobre esta pandemia —hoje mesmo, na verdade, já é possível encontrar trabalhos de escritores, cineastas, atores, artistas plásticos que refletem sobre a nossa aflição.

A quantidade de obras assim só deve aumentar. O que leva à pergunta —por que alguém iria querer prolongar mais ainda um martírio que já dura meses consumindo arte sobre a pandemia, depois que o pior passar?

várias televisões com cenas famosas de filmes e personagens usando máscara
Ilustração - Catarina Pignato

“Por que ler Primo Levi? Por que ver ‘Shoah’?”, retruca Márcio Seligmann-Silva, citando o escritor italiano e a série documental de Claude Lanzmann que estão entre os testemunhos mais duros do Holocausto. “Porque existe uma demanda social, psíquica e coletiva da comunidade dos afetados, dos traumatizados.”

Toda arte sempre teve algo de inscrição do próprio testemunho na história, segundo o professor de teoria literária da Unicamp, que se dedica a estudar a relação entre memória e literatura.

A procura das pessoas por obras que recontam grandes sofrimentos está ligada à necessidade de elaborar seus próprios traumas. “Todo mundo passa por vivências traumáticas na vida. A gente busca essas inscrições e se identifica com elas. A recepção dessas obras de arte é um ato profundamente autorreflexivo.”

“A arte não deve ser só um lugar de refúgio”, aponta a psicanalista Alessandra Parente, doutora em psicologia social e do trabalho pela USP. Um bom trabalho artístico, segundo ela, não é apenas aquele que anestesia, que alivia dores, mas aquele que enfrenta o desafio de articular o que não entendemos bem.

“O que está acontecendo agora é uma coisa tão inédita que ainda não temos formas cognitivas e intelectuais para decifrar. A arte é fundamental para começar a configurar esses afetos e pensamentos.”

Não é exagero algum dizer que a humanidade está passando por um período de trauma coletivo. O choque provocado pela abundância de morte e de pavor é tamanho que não temos, de pronto, nem imagens nem palavras para descrevê-lo.

“A arte dá forma, dá palavras e discurso para algo que nos ocupa, mas não encontra uma narrativa”, afirma a psicanalista Paula Peron, professora da PUC-SP, lembrando o conceito de sublimação cunhado por Freud. Mas calma, este não é um texto acadêmico.

“A sublimação, grosso modo, é o mecanismo da nossa psique para transformar excessos agressivos, libidinais, em produções aceitáveis para a cultura”, explica a psicanalista. “Quando temos muitos conteúdos psíquicos para elaborar, a sublimação através da arte é um caminho possível.”

Alessandra Parente acrescenta que essa tentativa de tradução, digamos assim, é criada à medida que o artista confecciona sua obra, no processo singular de cada um. Mergulhado no choque, ele ou ela “dá linguagem àquilo que é da ordem do trauma”.

Por isso, nem sempre as obras de arte definitivas sobre um grande acontecimento são feitas no calor da hora. É normal que a produção se demore, vá maturando no trabalho de artistas talentosos até que, enfim, algo ressoe de maneira mais potente.

É só observar como foi a produção literária depois do baque da Primeira Guerra Mundial, na qual o professor Jorge de Almeida, da USP, é especialista.

“Quando acabou a guerra, ao contrário do que se esperava, a tendência de grande parte do público foi se encaminhar para obras que não tratavam disso”, afirma. “O trauma era grande, era difícil lidar.”

Almeida comenta que, nos principais romances da década seguinte —como “Ao Farol”, de Virginia Woolf, e “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann—, não se menciona explicitamente a guerra, mas seus efeitos estão lá, de maneira indireta.

O marco, para ele, como primeiro grande romance a fincar os olhos na guerra e angariar repercussão extraordinária foi “Nada de Novo no Front”, do alemão Erich Maria Remarque, publicado em 1929, mais de dez anos depois do fim dos combates.

O professor de literatura comparada também ressalta que momentos de grande ruptura como esse costumam fazer surgirem formas inovadoras.

Aqueles anos 1920 não foram apenas palco de um novo romance modernista —além de Woolf e Mann, houve Joyce, Kafka, Faulkner—, mas também de nova poesia, nova música, novo teatro, tanto consequências como meios para lidar com o trauma do conflito europeu.

E é curioso que, em simultâneo a essas vanguardas radicais, veio uma outra corrente que buscava uma espécie de retorno à normalidade de antes, por mais frágil que ela fosse. “O pós-catástrofe não é um movimento único”, lembra Almeida. Afinal, a arte como refúgio sempre foi feita e buscada por pessoas de luto.

É claro que não dá para comparar diretamente o pós-guerra com o pós-pandemia, eventos distintos e separados por mais de um século, mas o exemplo oferece pistas do que pode acontecer com a cultura mundial daqui para a frente.

E há que pesar outras particularidades que vão guiar as abordagens sobre o coronavírus, um acontecimento mundial que afeta de diferentes modos os diferentes países, estratos sociais e grupos raciais, lembra Márcio Seligmann-Silva.

“A memória do brasileiro não vai ser igual à do argentino”, ele diz. O país vizinho contabilizava apenas 785 mortes pela doença até a última contagem, frente às nossas mais de 41 mil.

Dada a condução da crise pelo governo Bolsonaro, reprovada como ruim ou péssima por 50% da população e aprovada por 27%, segundo o Datafolha, “a inscrição artística da pandemia no Brasil vai ter esse elemento de denúncia de crime”, afirma Seligmann-Silva.

São dores individuais que vão ser tratadas no coletivo. É verdade que está tudo demorando em ser tão ruim. Mas se remexer em feridas na arte pode machucar, quem sabe seja também o grande poder transformador.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.