Artistas veem derrubada de estátuas como resgate e não apagamento de figuras

'Não estamos discutindo se mataram em massa ou não. Estamos questionando o lugar de heróis', diz professor

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São Paulo

Ídolos de pedra e metal tombam pelo mundo, arrancados por multidões em fúria de seus pedestais —e são pichados, marretados, jogados no fundo do rio. A busca é por reparação pelo que tais homens, antes de serem matéria inanimada, promoveram quando eram de carne e osso.

Com a ascensão dos protestos contra o racismo pelo planeta, disparados pelo assassinato de George Floyd por um policial branco nos Estados Unidos, os manifestantes se voltam para as estátuas no espaço público. Consideram um ultraje que tais homens sejam tratados como heróis.

As imagens de um protesto em Bristol, no Reino Unido, ganharam o mundo. As pessoas indignadas derrubaram uma estátua de Edward Colston, traficante de escravos do século 17, e a arremessaram no fundo de um rio que corta a cidade.

Ataques a imagens do tipo continuaram a se espalhar —e algumas delas começam a ser retiradas, como a do rei belga Leopoldo 2º, conhecido pelas atrocidades que cometeu no Congo.

Então começa o debate. Para um lado, destruir tais efígies é encenar a justiça que não foi feita quando os representados eram vivos, na esperança de que, ao teatralizar esses atos, a justiça se concretize na vida real. Na outra ponta, opositores acusam dano ao patrimônio, vandalismo —e, principalmente, o que seria uma tentativa de apagar a história.

O escritor Laurentino Gomes, autor de “Escravidão”, que saiu pela Globo Livros, foi um dos que se manifestaram contra a derrubada. Em post que repercutiu no Twitter, ele disse que tais imagens devem ser preservadas como objeto de estudo e reflexão.

Mas, numa sociedade habituada ao consumo voraz de imagens, interessa também saber o significado da performance produzida pelos manifestantes mundo afora.

“O que está acontecendo é comparável ao que houve quando o protestantismo surgiu e ocasionou a queda de imagens do cristianismo, como uma forma de validar esse poder que veio à tona”, afirma o artista plástico Antonio Obá, que acha ruim pensar o assunto sob o ponto de vista do certo ou errado.

Em vez de apagamento, Obá vê a iconoclastia dos protestos como um gesto de elucidação histórica, levantando uma série de questões. Por que uma imagem específica caiu e não outra? Se é dano ao patrimônio, às custas do que tal patrimônio foi construído? O que é exaltado e o que é marginalizado na sociedade?

Outro ponto que artistas visuais costumam destacar é um paradoxo. Embora estejam aos olhos de todos, a paisagem torna tais imagens de certa forma invisíveis —nossa vista, cansada pelo excesso da cidade, não as vê. É diferente do que aconteceria se estivessem em museus. E é também por isso que, muitas vezes, não temos ideia de quem são as estátuas no espaço urbano ou mesmo as pessoas que nomeiam as ruas.

Dessa forma, o ritual de destruir essas imagens, em vez de promover o apagamento do passado, é o que o resgataria da obscuridade. A figura de Edward Colston, o traficante de escravos britânico agora debaixo d’água, não ganhava tal fama desde o século 17. Só que essa fama, em vez de revestida de heroísmo e exaltação, chega a nós sob crítica.

E, na era digital, o que acontece é o contrário do sumiço, porque a imagem desses tombamentos se multiplica ao infinito e vai viver para sempre nas redes. Com a internet, beira o impossível fazer esses vídeos e fotos desaparecerem —o escravocrata parte para uma outra encarnação, agora imaterial.

Quem comunga dessa visão é a artista plástica Rosângela Rennó, que explora temas de memória em sua obra. Uma de suas últimas instalações, “Good Apple / Bad Apple”, é feita a partir de imagens de monumentos construídos em homenagem a Lênin —ex-líder soviético que também teve imagens destruídas. As fotografias usadas por Rennó foram colecionadas a partir do que ela encontrava online.

“Eu estava interessada em saber como as sociedades resolvem seus momentos de catarse. Algumas decidiram destruir Lênin. Outras resolvem reposicionar monumentos assim, mudando estátuas de lugar ou as pondo em pedestais menores. Às vezes vão para museus históricos ou passam a compor alamedas de horrores”, diz a artista.

Rennó lembra que só em tempos analógicos era possível desaparecer com documentos. E que as ações dos manifestantes são documentadas imediatamente. Além de tudo, as imagens da destruição das estátuas são feitas para serem reproduzidas.

“Aquela sociedade conviveu com aquela estátua sem dar importância às vezes. Basta que alguém a utilize para um ato catártico que você a faz sair do apagamento promovido pela paisagem”, afirma.

Vale lembrar que, no caso dos monumentos escravocratas, essa invisibilidade a olho nu é relativa. E pode se aproximar mais da naturalização. Se eram tão invisíveis mesmo, por que essas estátuas geram tanto debate ao serem destruídas?

“Vi um trabalho de um artista paraense uma vez. Numa cidade, tinha uma praça que todo mundo usava. Ele comprou uma máscara de ‘O Grito’, de Munch, e colocou na Nossa Senhora que estava no meio da praça e estava totalmente esquecida. Um belo dia, as pessoas começaram a se defrontar com essa Nossa Senhora”, diz Cildo Meireles.

A destruição de ícones e a força de seu simbolismo faz parte da história humana. Uma das imagens mais clássicas da história dos Estados Unidos —onde as estátuas dos heróis confederados estão sob escrutínio— mostra uma multidão derrubando uma imagem do rei George 3º, em 1776. Cinco dias depois desse fato, veio a Declaração de Independência do país.

É um imaginário com força à esquerda ou à direita. Vai desde o caso, nos anos 1990, do pastor que chutava uma santa na televisão, ao movimento Rhodes Must Fall, na África do Sul, em 2015, pedindo a remoção da estátua de Cecil Rhodes, um defensor do imperialismo britânico.

Segundo Thiago Amparo, professor de políticas da diversidade da Fundação Getúlio Vargas e colunista deste jornal, não há revisionismo histórico na atitude dos manifestantes.

“Não estamos discutindo se essas figuras mataram ou não mataram em massa. Estamos questionando o lugar delas de heróis. Isso não é revisionismo”, diz, defendendo também a preservação de monumentos que tenham valor artístico, mas com intervenções. “No caso do Monumento às Bandeiras, se poderia fazer outro ao lado, tratando do genocídio indígena.”

Já segundo a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, os lugares públicos deveriam dar espaço a histórias diferentes das contadas por tais monumentos.

“A história está se abrindo para pensar marcadores como raça, gênero, geração”, diz. “Se você vê a escravidão como um capítulo muito ruim da história, não há como homenagear traficantes de escravos.”​

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