Coronavírus atropela ano em que artistas indígenas tomariam os museus de SP

Mostra no MAM que integraria Bienal é cancelada, e mesmo exposições mantidas correm risco de ter menos público

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Homem com fantasia de onça-pintada

'Pajé-Onça: Hackeando a 33ª Bienal de Artes de São Paulo', performance de Denilson Baniwa apresentada no pavilhão da Bienal, no parque Ibirapuera, em 2018, e gravada em vídeo Acervo Denilson Baniwa/Reprodução

São Paulo

A cauda de um manto com estampa de onça desliza pelo chão do pavilhão da Bienal, no parque Ibirapuera. Envolto nele, está um homem de pés descalços e dorso nu, o rosto coberto por uma máscara de tigre. Numa mão, ele sacode um chocalho. Na outra, traz flores, que ele deita uma a uma em frente a certas fotografias e esculturas.

O homem era o artista Denilson Baniwa, indígena do povo baniwa, da região amazônica. A exposição, a Bienal de São Paulo de dois anos atrás. E a performance, conta Baniwa, por telefone, um protesto contra a forma como os povos originários apareciam naquelas obras —figuras sem voz, presas a um passado imemorial, que não foram convidadas a se representar, ele descreve. Seu pajé-onça servia, assim, como “uma energia ancestral, que abre verdades”.

Menos de dois anos depois, Baniwa participaria, desta vez oficialmente, da Bienal, numa mostra da programação estendida do evento no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM.

Organizada por Jaider Esbell, artista da etnia makuxi que participa do evento principal, com os pesquisadores Paula Berbert e Pedro Cesarino, “Moquém – Surarî Arte Indígena Contemporânea” reuniria trabalhos de mais de 50 artistas e coletivos, num esforço de mapear a diversidade da produção indígena pelo país e divulgar artistas sem acesso a esse circuito.

Com a pandemia do novo coronavírus, no entanto, a exposição foi cancelada pelo museu. Em nota, o MAM afirma que a decisão foi motivada pelos ajustes no orçamento e na programação ocasionados pela interrupção das suas atividades nesses meses de quarentena.

Já a Bienal diz que vem negociando cada uma dessas exposições paralelas individualmente, de modo a encontrar soluções que levem em conta as necessidades e potenciais de todos os envolvidos. Segundo Esbell, a mostra deve acontecer numa outra configuração, ainda a ser anunciada.

“Moquém - Surarî Arte Indígena Contemporânea” não foi a única exposição de arte indígena afetada pela pandemia.

O ano veria essa produção tomar a cidade, com mostras na Pinacoteca e no Sesc Ipiranga e a presença confirmada de três artistas indígenas na Bienal —além do próprio Esbell, Gustavo Caboco, wapichana, e o colombiano Abel Rodríguez, nonuya —, antecedendo um ciclo de exposições sobre o tema no Masp em 2021.

Mas o Masp adiou suas “Histórias Indígenas” para 2023, em razão das dificuldades para fazer empréstimos internacionais no contexto da pandemia e da alta do dólar, que encareceu as operações. “Não queríamos perder a amplitude, a complexidade e a potência da programação, então decidimos adiar”, afirma Tomás Toledo, curador-chefe do museu.

Além disso, mesmo os eventos mantidos, caso dos demais lembrados, podem ver uma redução significativa de público. Seja porque os museus devem limitar a quantidade de visitantes no pós-pandemia, ou por causa da chance de a população ter medo de frequentar espaços fechados.

Com isso, é possível que o espaço que os artistas indígenas vinham conquistando nos museus diminua, diz Sandra Benites, curadora do Masp —ela foi a primeira indígena convidada para uma função do tipo no país.

“Vai haver um certo apagamento, um apagamento que afeta o ser e o pensamento indígena desde a colonização, desde 1500. Mas quem vai perder não somos nós, e sim os brasileiros, que deveriam ter mais diálogo conosco”, ela afirma.

Mais do que um enfraquecimento, porém, Denilson Baniwa diz achar que as formas como ele e outros artistas negociam essa presença pode sofrer mudanças.

Ele conta que, até o início do ano, sua obra tinha um foco muito combativo em relação à história da arte oficial. “Hoje, isso não faz mais sentido. Tenho passado por situações complicadas, de perder amigos e mestres. Depois da pandemia, o que vai sobrar é a reconstrução desse mundo a partir do nosso conhecimento, que é de compartilhar, curar. Mostrar que asfalto, ferro e poluição não combinam com saúde.”

Ao mesmo tempo, continua Baniwa, essa revisão sistemática que ele e seus pares vinham empreendendo não tem mais volta. “Este ano, estaríamos escrevendo novos parágrafos, que dariam mais densidade ao nosso pensamento. Mas o parágrafo que já escrevemos não dá mais para apagar.”

Jaider Esbell, que num dos trabalhos que exibe na Bienal pretende justamente confrontar essa narrativa oficial da arte, também considera que o lugar que a produção indígena conquistou até agora é inegociável. O artista diz que a situação pode servir, na verdade, para sensibilizar o planeta de que sem os povos indígenas, não há futuro.

“Todo o mundo foi englobado nessas advertências que viemos fazendo, de que o céu vai desabar. Demorou muito tempo, mas agora estamos diante do abismo, e qualquer movimento em falso pode nos fazer pular ou nos segurar ainda mais. Temos tudo para nos segurarmos. E a questão é exatamente como as pessoas vão construir isso”, completa Esbell.

Enquanto isso, o artista participa da organização de uma série de seminários virtuais para o início de julho, que aproveitam a suspensão da agenda do que ele chama de sistemão para ouvir as demandas da comunidade indígena. “É um convite para essas instituições também. Ao menos, de escuta”, ele afirma.

Ele ainda trabalha em dois grandes eventos, para 2022, quando se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna, e em 2028, centenário da publicação de “Macunaíma”, de Mário de Andrade —o mito que deu origem ao romance é do seu povo, os makuxi, e o artista usa no seu trabalho a ideia de que é neto do herói.

Diretor da Pinacoteca, que abrirá “Véxoa – Nós Sabemos” ainda neste ano, Jochen Volz diz que é preciso lembrar que a presença da arte indígena no museu foi fruto de um longo processo, que incluiu seminários e atividades como os encontros com líderes durante a retrospectiva de Ernesto Neto no ano passado. “Ela não está vindo do nada, mas de uma pesquisa e uma forma de escuta que o museu tem adotado.”

Tanto é que “Véxoa” será inaugurada junto de uma nova exposição permanente, incorporando trabalhos de artistas como Esbell e Baniwa à linha do tempo da arte brasileira, acrescenta Volz.

“Para nós, não é um evento, é um paradigma de uma ideia de diálogo. Então não vejo como fazer isso no ano que vem. É essencial que o museu abra a nova montagem de acervo”, afirma o diretor, acrescentando que a exposição, adiada para o final de agosto, teve a duração estendida até março do ano que vem, de modo a garantir a visibilidade que merece.

Sandra Benites também diz que, mais do que fazer uma ou outra exposição, o importante é as instituições pensarem junto com os povos indígenas. “Há várias formas de estarmos presentes, enquanto curadores, palestrantes, artistas”, ela diz. “São imagens que não estão congeladas, e sim em movimento.”

Impacto da Covid-19 nas mostras de arte indígena em São Paulo

Histórias Indígenas
Tema que guiaria exposições no Masp em 2021 foi adiado para 2023

Moquém – Surarî Arte Indígena Contemporânea
Mostra no MAM, que integraria 34ª Bienal de São Paulo, foi cancelada, mas pode ser retomada em novo formato

Sawé
Exposição sobre lideranças indígenas no Sesc Ipiranga foi paralisada, mas será retomada quando o sistema S reabrir

Véxoa – Nós Sabemos
Mostra na Pinacoteca organizada por Naine Terena foi adiada para final de agosto, mas durará mais tempo que o previsto

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