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Entenda livro que inspira protestos nos EUA, 'A Deseducação do Negro'

Carter Woodson, autor da obra, é considerado 'o pai da história do negro americano' e é referência em lutas antirracistas

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Por que negros brasileiros não reagem às barbáries a que são submetidos como os negros americanos? É uma das perguntas que estalam ao se ter contato com “A Deseducação do Negro”, canônica obra publicada pelo historiador negro americano Carter Woodson em 1933.

O trabalho, pouco conhecido no Brasil —embora editado aqui pela Medu Neter há dois anos— parte do princípio de que nas escolas americanas as crianças negras não são educadas, e sim doutrinadas. Antes de tudo, a não se reconhecer como um povo distinto e diaspórico, como é, por exemplo, o povo judeu. E não se reconhecendo como um povo, não reagir como tal.

Dos anos 1930 do século passado ao presente, “A Deseducação do Negro” se multiplicou em salas de aula e mesas de cabeceira de afro-americanos. Ficou pop em 1999, quando a cantora e compositora Lauryn Hill ganhou o prêmio principal no Grammy daquele ano com seu primeiro álbum, “The Miseducation of Lauryn Hill”, versão musical, e sob ponto de vista da mulher negra, do clássico de Carter Woodson.

A cantora queria, com a homenagem, agradecer pelo fato de o livro ter ajudado a despertar a consciência dela mesma ao se enquadrar como aquilo que Carter mais critica em sua obra, “o negro que venceu na vida”. Foi sua implacável autocrítica que, enfim, “deseducou” negros que hoje por toda a América saem às ruas contra a violência policial.

“Só um negro em cada 10 mil está interessado no esforço de estabelecer o que sua raça pensou, sentiu, tentou e realizou”, dispara o autor, ao falar, já em 1933, sobre a baixa taxa de comparecimento de negros nas eleições.

Woodson sustenta que os afro-americanos foram educados longe de sua própria cultura e tradição, ligados à franja da cultura europeia —e, dessa forma, deslocados de si mesmos. E decreta, como educador respeitado e acadêmico robusto que o caminho era um só, a ideia de “afrocentricidade”. A necessidade de tomar as perspectivas africanas e afro-diaspóricas como centro da educação básica nas escolas.

Só assim, de acordo com ele, um povo pode se reconhecer como um —e não ser alienado de si próprio. O menino negro João Pedro em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, levou um tiro de fuzil pelas costas. Solitários, os bravos movimentos negros daqui não conseguem arregimentar para as ruas pessoas de cor, pelo simples fato de que, segundo o IBGE, negros se veem como pardos.

Nas ruas dos Estados Unidos, as frases de Carter Woodson são exibidas em cartazes, entre elas “se o negro do gueto deve ser eternamente alimentado pela mão que o empurra para o gueto, ele nunca será forte o suficiente para sair do gueto”.

Em “A Deseducação do Negro”, há mais e implacáveis trechos. “Sob o atual sistema do capitalismo, o negro não tem chance de trabalhar por elevação na esfera econômica. A única esperança de melhorar sua condição a esse respeito é através do socialismo, o controle popular de recursos, e agências que estão agora sendo operadas para ganhos privados.”

“The Miseducation of Lauryn Hill” é apocalíptico. Faixas como “Every Ghetto, Every City” e “Forgive Them Father” a compositora tenta pensar num futuro para o filho, negro como João Pedro, de São Gonçalo, andando pelas ruas sob a influência do olhar duríssimo de Carter Woodson.

Estruturado em 18 capítulos, que vão da abertura “A Base do Problema”, ao fundamental “Educação Política Negligenciada”, a obra parece estar dialogando com o Brasl do século 21. No capítulo “O Erudito Negro Deixa as Massas”, pensamos em Neymar e imaginamos se algum dia ele vai se considerar negro.

“A Deseducação do Negro” não deixa assunto algum de fora, colérico com a situação, também análoga à do Brasil contemporâneo, do negro na política. “O negro, independente do partido ao qual se filie, nunca será eleito para ser seu líder.” E, especialmente rigoroso, afirma que “o negro ainda mantém o hábito obnóxio de repreender os seus e adorar os outros”. É implacável com a religião ao afirmar que “de forma semelhante ao camaleão, o negro absorveu quase todas as religiões que lhe foram impostas”.

Carter Woodson é, na academia, considerado “o pai da história do negro americano”. Era um pai severo. “Devemos usar a segregação para matar a segregação”, ele escreve no capítulo “Como Perdemos o Alvo”.

Fomos educados, Brasil e Estados Unidos, os dois países que mais importaram escravos como fossem produtos, a não sermos gente. A nos filiarmos à ideia de amálgama. De mistura de raças. De parte de um todo exuberante. Um estelionato retórico que, segundo Woodson, consiste no que chamamos de educação formal.

“A Deseducação do Negro” convoca os negros a se reconhecerem como um povo distinto, enfatizando que outros povos na história fizeram e ainda fazem a mesma coisa, sem que sejam marginalizados.

O livro termina em tom visionário, parecendo falar até da tragédia das fake news.

“Quando você controla o pensamento de um homem, você não precisa se preocupar com suas ações. Você não precisa dizer a ele para não ficar aqui ou ir além. Ele encontrará seu ‘lugar apropriado’ e permanecerá nele. Você não precisa mandar ninguém para a porta dos fundos. Ele irá sem ser mandado. E, se não houver uma porta dos fundos, ele fará uma para sair por ela. Sua educação formal faz com que ele tenha a necessidade disso.”

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