'Eu sou a obra', diz Marina Abramovic, que prepara ópera sobre Maria Callas

A artista plástica é protagonista e diretora do espetáculo que também é encenado por Willem Dafoe

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mulher rege orquestra fictícia em ópera

Marina Abramovic no palco da Ópera Estatal da Baviera, em Munique, onde seu espetáculo 'Sete Mortes de Maria Callas' estreia em setembro de 2020 Wilfried Hösl/Reprodução/The New York Times

São Paulo

Marina Abramovic esperava tirar um tempo para descansar no ano que vem. Depois de uma carreira artística sem igual, que inclui de performances em que oferecia o próprio corpo à violência do público àquela em que encarou, por 700 horas, olho no olho, os visitantes do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, ela conta que andava sonhando com uma pausa.

“Estava entrando em aviões a cada três ou quatro dias, porque não posso enviar minha obra. Eu sou a obra.”

Até que a pandemia do novo coronavírus adiantou o hiato. “Sabe, as pessoas sempre me perguntam sobre a quarentena como se ela fosse terrível. Mas acho que é bom para as pessoas interromperem um pouco suas vidas e experimentarem o agora. O coronavírus nos mostrou que não dá para planejar nada”, diz.

“Parece que o mundo inteiro passou a praticar o meu método.” Abramovic se refere aos exercícios de meditação e introspecção que ela desenvolveu ao longo da carreira e que agora se dedica a ensinar ao público e a jovens aprendizes —e até à Lady Gaga, numa ocasião.

Vivendo parte do tempo no seu casarão no norte do estado de Nova York, a artista sérvia está plantando tomate, pepino e cenoura. Diz que a pandemia é uma espécie de luto coletivo pelo qual a humanidade passa, um momento de repensarmos modelos. E declara passar longe dos jornais. “Quero vomitar quando vejo fotos do Trump.”

Mesmo no idílio de agora, Abramovic passou dois meses desta pandemia trabalhando, ensaiando “Sete Mortes de Maria Callas” na Ópera da Baviera, em Munique.

Protagonista e diretora do espetáculo, a artista afirma que ele nasceu há três décadas do desejo de produzir uma ópera em que as mocinhas padecessem de amor. “E Maria Callas morreu de verdade por um coração partido”, afirma.

No palco, porém, Abramovic encena não um, mas sete fins trágicos para Callas, cada um ao som de uma ária imortalizada pela cantora. A montagem é minimalista, conceitual, descreve a artista. E as mortes, variadas. Na ficção, ela morre queimada viva, esfaqueada, de tuberculose, de ataque cardíaco, louca.

Em todas elas, seu carrasco é o milionário Aristóteles Onassis, que na vida real deixou Callas por Jackie Kennedy —o personagem é interpretado pelo ator Willem Dafoe.

mulher é asfixiada por cobra enquanto homem a observa
O ator Willem Dafoe e a atriz Marina Abramovic num dos filmes que acompanham as sete árias de 'Sete Mortes de Maria Callas' - Marco Anelli/Reprodução/The New York Times

São violências que não são estranhas à artista. Ao longo da carreira, ela já rasgou uma estrela na própria barriga, gritou até perder a voz e, numa ocasião, desmaiou intoxicada por fumaça. Na ópera, então, Abramovic volta às origens?

A artista responde que não. Agora, explica, suas mortes são puro teatro, filmadas em Hollywood. “Queria usar as metáforas. Aos 73 anos, não preciso mais passar por experiências de vida ou morte. Vou morrer de toda forma, por que fazer isso agora?”

Ao mesmo tempo, pondera, não é como se as encenações fossem menos potentes que as suas performances. Ela vem usando o palco como aliado desde 1989, depois de terminar um relacionamento de anos com o artista alemão Ulay numa performance na Grande Muralha da China —cada um percorreu metade do caminho só para se despedir bem no meio do trajeto.

Foi quando ela fez sua primeira biografia, com Charles Atlas, a primeira de seis —a ópera é a sétima. “Queria que a minha vida se desenrolasse à minha frente, para lidar com a dor de um jeito diferente.”

Vida e morte, aliás, não parecem assustar Abramovic. Ela fala com frequência dos planos para o seu funeral, a ser realizado em três cidades diferentes, com os enlutados vestidos em cores vibrantes.

Questionada sobre o assunto, ela se lembra de uma mulher centenária que conheceu ao filmar no Brasil o documentário “Espaço Além”, em busca de rituais de fé. “Perguntei a ela o que era mais importante nessa vida. Ela respondeu que era como entrar e como sair dela. Agora, estou interessada na saída”, responde a artista.

Não que ela fale em se aposentar. Abramovic lista uma série de planos para depois da pandemia. Além da ópera, que teve sua estreia remarcada para setembro e que sairá em turnê pelo mundo no ano que vem, ela também trabalha numa das maiores exposições da sua carreira, na Academia Real de Londres, com mais de um terço de obras inéditas.

A mostra deveria abrir em setembro, mas foi adiada por um ano por causa do coronavírus. “Adoro o título dela, ‘After Life’ [além]. Já morri o suficiente", diz Abramovic. A artista ainda toca o instituto que leva o seu nome, dedicado ao ensino da performance e do seu chamado método.

Há dois anos, ela desistiu de reformar um teatro no norte do estado de Nova York para sediar a empreitada, com projeto do incensado arquiteto Rem Koolhas. “Quando você constrói algo físico, passa a maior parte do tempo arrecadando fundos para o aluguel, os salários, e não para as ideias. Então nosso mote é não venha a nós, iremos até você.”

Foi dessa forma, afirma Abramovic, que ela negociou sua última grande exposição no Brasil, “Terra Comunal”, que arrastou multidões ao Sesc Pompeia há cinco anos. A artista diz que os brasileiros são um de seus públicos favoritos, passionais, emotivos. E reage assustada ao ouvir que o país tem visto uma radicalização da direita nos últimos tempos.

Ela mesma, aliás, tem sido vítima de grupos do tipo, que a acusam de satanismo. No entanto a artista prefere não comentar o assunto. “Nunca me pronunciei porque parecia ridículo. Sou uma artista.”

Seja como for, os ataques não parecem abater Abramovic —que, ao menos em suas performances, tem um quê de sobre-humana, aguentando a dor, a fome, a sede por horas a fio, às vezes, dias.

Questionada se tem algum conselho para ajudar as pessoas a lidar melhor com o sofrimento em tempos tão duros, ela lembra o artista francês Henri Matisse. Era o único dos artistas que, em meio às atrocidades da Segunda Guerra, preferiu pintar só flores, o tempo todo, explica Abramovic.

“É uma lição e tanto. As pessoas estão estressadas, sentem cada vez mais medo da morte. Acho que elas deveriam se cercar de beleza”, diz. “E mergulhar em si mesmas.”

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