DJs enfrentam remuneração baixa e a sombra da lei em busca por espaço na internet

Sem cachê de festas, quem toca remixes e mashups convive com lives 'derrubadas' e tenta se manter relevante na pandemia

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São Paulo

“Não vou mentir. Sinto que estou há três meses trabalhando de graça”, diz Vitória Nicolau, DJ da festa Perifa no Toque, já estabelecida na noite paulistana. Ela tinha nove apresentações marcadas para março, mas seus planos foram frustrados pela pandemia. Acabou, junto com as festas, migrando para a internet.

Nicolau já tocou em lives, como a da festa Batekoo, e também para seus 11 mil seguidores no Instagram. Além da remuneração baixa, muitas vezes inexistente, ela vem enfrentando um problema cada vez mais recorrente entre DJs —a derrubada das lives por infringirem leis de direitos autorais.

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A DJ Vitória Nicolau, residente na festa Perifa no Toque, que acontece em São Paulo - Agência Chaos/Reprodução/Facebook

A situação da paulista é bastante representativa do que vem acontecendo com um tipo específico de DJ, aquele que faz sets baseados em remixes e mashups, e trabalha em cima de canções alheias. Em geral, os DJs de festa, por não lançarem músicas próprias, não recebem direitos autorais, como compositores, instrumentistas, intérpretes e produtores. Sem as festas, também não ganham cachê.

“Tem os dois lados. As festas não estão conseguindo dinheiro para repassar aos DJs e a quem trabalha. Mas, ao mesmo tempo, não tem como eu deixar de tocar e de aparecer em lives, para que as pessoas saibam que meu trabalho ainda está em evidência, que ainda somos necessários”, diz Nicolau.

Segundo ela, que é endossada pelos colegas, o público tanto em festas no Zoom, aplicativo de reuniões, quanto nas transmissões ao vivo tem crescido e já é relevante. Além das pessoas que habitualmente frequentavam as festas, seguidores dos DJs de outras partes do Brasil —e até do mundo— agora estão mais próximos dos artistas.

Em alguns casos, o apelo pode até se reverter em dinheiro —mais comumente, em lives para marcas, doações e ingressos opcionais—, mas a demanda desses DJs vai além da remuneração. Ela é, de certa forma, uma busca pela existência num ambiente digital.

O DJ kLap, conhecido em Brasília pelos remixes de rap, funk e música pop, conta que teve uma live no Instagram retirada do ar depois de tocar um remix de uma música de Tyga, rapper americano. “Fiquei a transmissão inteira tentando não tocar nada mainstream, mas, quando toquei essa, derrubaram”, diz.

A situação é corriqueira e independe da plataforma. Nicolau também já viu suas lives caírem tanto no Instagram —quando tocou Beyoncé, por exemplo— quanto no YouTube. Ela chegou a enviar todo o set previamente ao site de vídeos, que vetou só uma faixa. Na hora da transmissão, no momento em que essa canção era tocada, o som foi cortado pelos produtores da live. A estratégia evita transtornos maiores, como a perda do canal.

“No mês passado, participei de uma live no Facebook”, diz kLap. “Uma menina estava tocando um set só de rap dos anos 1990 e 2000, e a live caía a cada cinco minutos. Estava muito divertido, mas ninguém conseguia assistir, porque ficava caindo. É meio triste.”

A lei dos direitos autorais é complexa e tem peculiaridades. Em transmissões na internet, o impasse não está só ligado ao pagamento equivalente à execução pública ao Ecad, que cabe às plataformas —e não aos DJs—, mas ao direito de reprodução.

Na prática, a live acaba sendo uma forma de gravação de música e, por isso, está submetida a regras semelhantes às do uso de samples em canções originais. Portanto, numa transmissão na internet, é necessário ter a autorização dos detentores dos direitos para usar as músicas —seja em remixes, mashups ou sem modificações.

No caso de uma festa presencial, em casa noturna, os DJs não precisam de autorização para tocar as músicas que quiserem, já que se trata de uma performance —e não do uso em gravação. E o pagamento da execução pública é feito a partir de uma porcentagem do lucro da boate na noite, diretamente ao Ecad.

Em resumo, se o detentor dos direitos de uma determinada canção, que pode ser uma empresa independente ou gravadora, não autorizar o uso da faixa, ela fica bloqueada. Essa é a regra geral para as principais plataformas, e nada nela mudou com a chegada da pandemia. O que aconteceu foi um cerco maior de gravadoras e editoras nas plataformas, em busca de controlar o conteúdo ao qual têm direito.

Enfrentando problemas no Instagram, no YouTube e no Facebook, muitos DJs migraram para a Twitch, site de transmissão popular entre os gamers. Além de possibilitar lives com maior qualidade técnica, a plataforma oferece múltiplas maneiras de monetização.

Mas a empolgação durou pouco. No começo deste mês, a Twitch divulgou um comunicado pedindo que seus usuários apagassem os vídeos em que reproduziam músicas das quais não tinham a autorização para uso. A plataforma, sediada nos Estados Unidos, explicou que a orientação veio após pressão de grandes gravadoras —que têm as suas maneiras de rastrear as faixas na internet.

O DJ Zegon —do Tropkillaz, famoso no mundo todo por produzir clássicos dos Racionais e de Sabotage— não chegou a ser “derrubado”, mas teve sets parcialmente cortados na Twitch. Suas transmissões têm marcas vermelhas que indicam momentos do vídeo que tiveram o som removido.

Ainda assim, ele acredita que a plataforma é a mais adequada. “Para você ganhar algum dinheiro em live no YouTube, tem que ter milhões de pessoas assistindo. Não vai ganhar nada tocando para 200 ou 300. Na [minha] segunda semana [na Twitch], já começou a ‘monetizar’. De casa, ganho mais do que em bar para cem pessoas.”

Nas transmissões, ele faz sets variados, interage com filha, mulher e fãs e diz que os chats “viraram balada”. Graças à fama construída ao longo de décadas, Zegon conseguiu reunir assinantes na Twitch, pessoas que pagam uma mensalidade e escolhem seu canal para seguir e também ter acesso a conteúdo exclusivo.

Uma de suas transmissões, por exemplo, foi dedicada ao rap nacional. “Contei tudo que eu produzi, como se fosse um programa de rádio, mas tocando, mostrando os samples. E criei figurinhas personalizadas —do Mano Brown, do Sabotage, do Ice Blue. Só quem tem são assinantes. Eles usam no chat.”

Mas Zegon entende que está numa posição privilegiada e diz que vai repassar o dinheiro ao “pessoal da técnica”, impossibilitado de trabalhar. Ele pensa na criação de uma lista de carta-branca nas plataformas, para que DJs profissionais possam se cadastrar e ter liberdade para tocar as músicas.

“Se tiver marca envolvida, concordo que uma parte vá para editoras, gravadoras e autores. Mas, quando estamos divulgando música nas nossas redes pessoais, levando diversão, tentando manter viva a cultura e levar ‘algum’, acho absurdo virem para cima.”

Sem dinheiro e à sombra da lei, os DJs relembram seu papel clássico na cultura, de disseminação e manutenção da música e de sua memória. Ao longo da história, incontáveis canções ficaram conhecidas ou ganharam sobrevida nas mãos de um DJ. No rap e no funk, gêneros em alta no Brasil, os “apertadores de botão” —como são jocosamente chamados— surgiram antes até do que os próprios MCs.

“Os DJs sempre foram os maiores divulgadores de música”, diz Zegon. “E de graça, muitas vezes ‘criando’ hits, músicas que nunca tocariam e de tanto tocar entram na roda. O caminho, o que pleiteamos, é um movimento de ‘deixe os DJs tocarem’.”

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