Fundação Palmares censura biografias de lideranças negras históricas em seu site

Funcionários contam que extração do conteúdo foi ordenada pelo presidente da instituição, Sérgio Camargo

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Pedro Borges Nataly Simões Gustavo Fioratti
São Paulo

Biografias de personalidades negras importantes da história do país vêm sendo censuradas de forma sistemática no site da Fundação Palmares, instituição federal que tem como objetivo zelar por essa memória.

Funcionários e pesquisadores acusam Sérgio Camargo, o chefe do órgão apontado pelo governo Bolsonaro, de negar a importância dessas figuras históricas, em especial aqueles que se projetaram como símbolos da esquerda. Cinco meses depois que Camargo assumiu o comando da fundação, o site do órgão sediado em Brasília perdeu uma de suas principais páginas.

O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira/Folhapress

Entre servidores da Palmares, o que se diz é que Camargo ordenou que a página fosse apagada. O endereço da internet mostrava um mosaico com fotografias e nomes. Esse mosaico dava acesso a vários artigos sobre a vida de homens e mulheres negras, entre eles a de Zumbi dos Palmares, considerado um líder negro dos mais importantes na história do país, mas que Camargo tem atacado como parte do projeto de revisionismo histórico da chamada ala ideológica do governo.

Pessoas que falaram sobre o caso pediram anonimato por terem medo de demissão, prática que tem atingido outros servidores ligados à Secretaria Especial da Cultura no governo Bolsonaro. Numa gravação revelada pelo jornal O Estado de S.Paulo, registrada sem que ele soubesse, Camargo chamou o movimento negro de "escória maldita".

Na tentativa da fundação de reescrever a experiência negra no país, sumiram os artigos sobre Zumbi dos Palmares, os abolicionistas Luís Gama e André Rebouças, a escritora Carolina de Jesus e muitos outros homens e mulheres negros de projeção na história. Também desapareceram artigos sobre personalidades negras de destaque no esporte do país.

Embora a página com o menu tenha sido removida, ainda é possível encontrar artigos relativos a essas figuras digitando o nome delas no campo de pesquisa do site da fundação.

Os esforços de apagamento, no entanto, também se refletem no dia a dia da instituição fora do site. Outro projeto revisionista nos planos de Camargo é a construção de uma biblioteca que valoriza o papel da corte portuguesa na formação da identidade brasileira e mesmo no processo de abolição da escravatura. A nova ala deve ocupar um prédio que pertence à Empresa Brasil de Comunicação.

Enquanto isso, também foi retirada uma estátua de Zumbi dos Palmares da entrada da sede da fundação em Brasília. Diante das declarações de Camargo sobre a figura histórica, uma funcionária do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra quis agradar o presidente de órgão e guardou a escultura num depósito.

Procurada, a Fundação Palmares não respondeu até a publicação desta reportagem questões sobre a retirada da página do site nem comentou o sumiço da escultura.

As medidas recentes de censura vêm no rastro de outras provocações do chefe da instituição. Uma das primeiras medidas de Sérgio Camargo à frente da Palmares foi encomendar, para serem publicados no dia 13 de maio, quando se comemora a abolição da escravatura no país, artigos que desmoralizavam a figura de Zumbi.

Os artigos “Zumbi foi um herói?”, de Mayalu Felix, e “Zumbi e a Consciência Negra - Existem de verdade?”, de Luiz Gustavo dos Santos Chrispino reduzem a figura do líder do Quilombo dos Palmares a um mito criado pelo movimento negro e pela esquerda.

Depois de uma manifestação do Ministério Público Federal, a Justiça ordenou que esses dois artigos fossem retirados do ar. A entidade diz que recorrerá da decisão, acionando a Advocacia Geral da União.

Em outro artigo, chamado “Por que Lembrar, em 13 de maio, a Princesa Isabel do Brasil?”, Laércio Fidelis Dias, diretor do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro da fundação, homenageia a figura da monarca que assinou a abolição da escravatura.

O Ministério Público Federal abriu inquérido para apurar se as medidas de Sérgio Camargo podem ser consideradas improbidade administrativa por atentar contra os princípios da administração pública.

É bom lembrar que Camargo também ficou muito conhecido por declarações controversas nas redes sociais sobre a cultura negra. Ele diz por exemplo que no Brasil existe “racismo Nutella” e que a escravidão teria sido benéfica para os descendentes dos escravos.

Essas declarações foram suficientes para que a Justiça pedisse em dezembro a suspensão da nomeação de Camargo à presidência da Fundação Palmares, por meio de liminar, situação que foi revertida no início deste ano. O caso de censura se deu logo após ele assumir, junto com diversas demissões na instituição.

O Ministério Público Federal (MPF) considerou que os artigos desqualificam a figura de Zumbi dos Palmares e abriu uma representação para que Sérgio Camargo responda judicialmente por improbidade administrativa por atentar contra os princípios da administração pública.

Para a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, o conteúdo dos artigos viola o propósito de criação do órgão público de promoção à cultura negra. “A Fundação Palmares já nasce vocacionada à promoção dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira. Negar ao povo negro a sua história e seus heróis, como é o caso de Zumbi, é atentar contra a instituição que Sérgio Camargo preside”, diz a representação.


Esta reportagem é uma parceria entre a Folha e a Alma Preta, agência de notícias especializada em questões raciais

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