Descrição de chapéu Coronavírus

Longe de lives e patrocínio, músicos apostam até em telemarketing e camping

Vulnerável, setor tenta aprovar projeto emergencial que destina R$ 3 bi para auxílio

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Fabio Andrade/Sesc

Teatro Paulo Autran, no Sesc Pinheiros, em São Paul imagem mostra teatro vazio

São Paulo

Há três meses, a banda paraibana Glue Trip planejava embarcar pela primeira vez numa turnê por Estados Unidos e Europa, mas o avanço do novo coronavírus pelo mundo cancelou a viagem.

Agora, o quarteto se vira para conseguir renda além das vendas de disco e streaming. A situação da banda reflete a realidade de boa parte do universo da música; longe das lives e dos patrocínios de grandes marcas, artistas, produtores e técnicos tentam sobreviver sem agenda e sem previsão de retorno dos eventos.

Profissionais da música contam que começaram a dar aulas online, fizeram bicos em publicidade e até arranjaram emprego em telemarketing.

A esperança agora reside na recente aprovação do projeto que libera R$ 3 bilhões para ajudar o setor cultural. A medida, conhecida como Lei Aldir Blanc, acaba de ser aprovada no Senado sem mudanças em relação ao texto que veio da Câmara e agora vai à sanção presidencial.

Baterista da banda Alaska e sócio do Cavalo Estúdio! desde 2015, Nicolas Csiky conta que a receita do espaço é praticamente zero desde março, quando a maior parte dos clientes deixou de marcar os ensaios com medo do vírus na capital paulista.

A solução tem sido vender camisetas, dar aulas, oferecer serviços remotos, como edição e mixagem, e negociar vouchers para ensaios futuros. Csiky diz que ganhou cerca de dez alunos para ajudar na renda, mas que, mesmo negociando o aluguel do estúdio, o futuro ainda é incerto. “Pode ser motivo para fecharmos”, ele avalia.

Sertaneja muito antes de o estilo se tornar universitário, a dupla Mococa e Paraíso pensou em fazer lives. O problema, além do pouco trato com o ambiente virtual, foi a saúde e a segurança, já que os integrantes, com 81 e 73 anos, estão no grupo de risco da doença.

“Pusemos na internet um trabalho nosso, para não ficar esquecido de vez. Vamos aguardar, estou em casa tranquilo, mexendo com minhas músicas, até já fiz uma para o ano de 2020”, conta Paraíso.

A longa carreira proporcionou a oportunidade de receberem direitos autorais pela obra já composta e é assim que eles têm sobrevivido por enquanto. Com mais de quatro décadas de estrada, a dupla tinha agenda até setembro.

Mesmo com os 11 shows programados suspensos —“tinha até em Rondônia”, conta Mococa— eles têm mantido os pagamentos mensais aos profissionais que os acompanham nos bastidores durante as turnês.

A equipe de produtores e técnicos que atuam atrás dos holofotes do palco é chamada de graxa. O trabalho pressupõe a realização dos eventos, impossíveis durante a quarentena. Quase sem função no ambiente virtual, o setor depende de iniciativas como a da dupla sertaneja ou de vaquinhas online.

Uma delas, organizada para doar alimentos e produtos de higiene para esses trabalhadores em Curitiba, conseguiu arrecadar R$ 4.300.

Guto Antunes, 47, começou a trabalhar como “roadie” na década de 1990 e, nos últimos tempos, fazia a direção de palco dos grupos Barão Vermelho e Los Hermanos.

Sem renda alguma, deixou o Rio de Janeiro para tentar diminuir gastos e foi morar num pequeno terreno em Paraty, no litoral fluminense, propriedade que comprou anos atrás, onde montou um acampamento para viver.

“Minha intenção é fazer um camping, porque o turismo, que também é afetado [pelo coronavírus], deve voltar antes dos shows. Minha esperança é sobreviver do camping até voltar a fazer show”, diz.

Ele conta que recebe ajuda do pai, servidor público aposentado de 79 anos, para pagar as contas. “Ele me ligou, falou para eu ver tudo que der para ir fazendo no sítio, ‘porque não sei se vou morrer e, se morrer, não sei se consigo ajudar’”, conta.

A informalidade e falta de estrutura do meio artístico ficou escancarada durante a pandemia. Tanto a graxa quanto grande parte dos músicos atuam como autônomos, sem renda fixa, aposentadoria ou seguro desemprego. Uma alternativa é tentar o auxílio emergencial disponibilizado pelo governo, mas que ainda apresenta longas filas de espera.

“Eu sinto falta de uma política cultural que evite que nossa classe passe por uma ‘uberização’. Já há algum tempo a gente está desprotegido. Quando você espera uma proposta específica para o setor, [o governo federal] faz o contrário. Vai no cerne que mais fomenta, o Sesc, e anuncia corte”, diz Guto Ruocco, dono da produtora Circus.

O presidente Jair Bolsonaro é crítico do Sistema S, do qual faz parte o Sesc, complexo que só no estado de São Paulo tem 43 espaços.

Só na música, a entidade precisou, em razão do coronavírus, cancelar 413 compromissos previstos entre meados de março e o fim de abril —em maio, nem sequer pôde fazer agenda. Segundo cálculos do Sesc, entre artistas, técnicos e produtores, são 2.800 pessoas afetadas pelo vácuo de eventos.

Além disso, a Secretaria Especial da Cultura, subordinada ao Ministério do Turismo, passa por turbulência, com o impasse quanto à saída de Regina Duarte. Artistas de diversos setores criticam a pasta por sua omissão em meio à crise e apostam no projeto que promete auxiliar trabalhadores e empresas do setor.

“O artista ainda depende de show e é uma covardia falar de show nesse momento. É hora de ficar em casa”, afirma Guto Ruocco.

“A área musical é muito precarizada, de profissionais, de formato, pagamento, contrato, formalidade. Essa quarentena abriu e mostrou como o mercado é insustentável para os músicos”, diz Lucas Moura, guitarrista e vocalista da Glue Trip, que tem usado a experiência de publicitário para conseguir uma renda extra sem os shows.

Com os palcos vazios até não se sabe quando, a escuridão assusta até quem está acostumado a fazer, nas sombras, um espetáculo.

“Nós nos intitulamos como graxa e tem uma frase do Tenente [conhecido diretor de palco da MPB] em que ele fala ‘sem a graxa não tem brilho’”, diz Guto​ Antunes.

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