Descrição de chapéu

Mostra online de León Ferrari sofre da asfixia que guiou seus trabalhos

Na tela de um tablet, o humor cáustico do artista murcha, desidratado como um meme perdido nos feeds

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León Ferrari

  • Onde Disponível no site da galeria Nara Roesler, nararoesler.art

O silêncio é sepulcral, o vazio, asséptico. Nada escancara a artificialidade estranha dos chamados cubos brancos de forma mais triste que a moda dos “online viewing rooms”, ou salas de exposição virtuais, que se alastram pelos sites de museus e galerias de arte como mais um vírus em tempos de pandemia e quarentena.

No rastro de mostras pensadas para a tela dos telefones ou laptops que grassam mundo afora, a galeria Nara Roesler acaba de inaugurar, em seu site, uma individual do argentino León Ferrari, nome incontornável da arte latino-americana da segunda metade do século 20, um iconoclasta em todos os sentidos, organizada por outra grife, o venezuelano Luis Pérez-Oramas, ex-MoMA e autor por trás de umas das mais fortes edições da Bienal de São Paulo já montadas.

León Ferrari
Obra sem título da série ‘Releituras da Bíblia’, de León Ferrari, agora em mostra online - Divulgação

Vagar pela mostra, no entanto, se revela um desengonçado passeio por slides, visões de longe, o conjunto dos trabalhos na parede, alternadas com um olhar mais detido, de perto, em que é possível ampliar —só um pouco— o trabalho para enxergar seus detalhes.

E detalhe é tudo em Ferrari, o arquiteto radical de estruturas de arame prismáticas, que lembram esqueletos de prédios ou jaulas ameaçadoras em curto-circuito. Ou de visões da Bíblia, entre elas o “Juízo Final” de Michelangelo coberto de excrementos de pombos ou um Giotto profanado por um caça que decola rumo ao combate entre as copas das árvores.

Quando não os horrores da guerra a assombrar as cenas sacrossantas, os anjos, apóstolos e afins rodeiam, com auréolas douradas a postos, sacados direto do cânone medieval, cenas de sexo explícito de antigas gravuras orientais.

Mas, na tela de cristal de um tablet, o humor cáustico de Ferrari murcha, desidratado como um meme perdido nos feeds sem graça da quarentena.

Sua visão das cidades, metrópoles abstratas retratadas em trabalhos com homenzinhos anônimos se debatendo contra uma arquitetura tão estéril quanto opressora, sugerem impotência e asfixia, além de falta de propósito, diante do real.

O fôlego escasso se pronuncia mais ainda na versão online da galeria. Os detalhes táteis, mesmo que seja proibido tocar as obras, a variação da luz e da sombra e também a circulação do ar fazem falta ao contemplar esses trabalhos, em especial as esculturas, que não prescindem do vazio, da relação do maciço com o oco, do opaco com o transparente.

Ferrari, e quem conhece seus desenhos de perto vai concordar, é um artista dos grandes. Nenhum site está à altura dele.

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