Como acontece com os tiros de “Grande Sertão: Veredas” e a descoberta do gelo em “Cem Anos de Solidão”, a abertura de “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf, é cena conhecida até daqueles que nunca leram o romance além da primeira página.
A protagonista Clarissa Dalloway define que sairá, ela própria, para comprar flores. No original, uma construção célebre e singela. Vertida para o português, a frase ganha variações tão sutis quanto valiosas, a ponto de fazer com que possa, ela própria, definir os rumos da tradução inteira.
Lançado em 1925, o romance foi traduzido por Mário Quintana em 1946. Em 2012, quando a obra de Woolf entrou em domínio público, foram publicadas outras três traduções, de Claudio Alves Marcondes, Tomaz Tadeu e Denise Bottmann, que ganhou o prêmio da Biblioteca Nacional pelo trabalho.
Em todas elas, são ínfimas as diferenças na frase inicial –mudam a conjugação de um verbo ou a transposição do pronome reflexivo. Mas é curioso notar que já está sempre ditado ali, nas flores de Dalloway, o ritmo do resto das páginas.
Não é diferente com o “Mrs. Dalloway” que a Antofágica lança esta semana. Ao verter de maneira impecável o início da trama, Thais Paiva e Stephanie Fernandes apresentam o tom de sua Clarissa. E –que sorte– ela parece muito mais acessível e verdadeira do que antigamente.
Tenha sido para facilitar a vida do leitor dos anos 1940, ou só para acelerar o processo, Quintana, por exemplo, desviou de muitos dos engenhos da linguagem de Woolf, captados agora com uma delicadeza talvez flagrante só ao olhar feminino –Bottmann não levou a estatueta em 2012 por acaso.
O fluxo de consciência, trunfo mais celebrado numa obra assumidamente influenciada pelo “Ulisses” de Joyce, é, na nova edição, transportado para uma linguagem fluida, sem que se perca a genialidade.
Deste modo, surge a maior vitória deste “Mrs. Dalloway” –compreender que Virginia Woolf é, a priori, um desafio para a maioria, e que cabe fundamentalmente à tradução não transformar o teor das quase 400 páginas em outro obstáculo.
Passado em junho de 1923, na Londres pós-Primeira Guerra, o livro conta um único dia na vida de uma mulher de 52 anos, casada com um parlamentar, que vivencia a expectativa e os preparativos da festa que oferecerá naquela noite.
Clarissa interage com personagens construídos com admirável profundidade, seja no plano real ou em memórias e projeções. Entre eles o marido Richard, o ex-amor Peter, a filha Elizabeth e a amiga Sally.
Septimus, jovem traumatizado pela guerra, atua como um duplo de Clarissa, em roteiros que aparecem como espelhos até seu desfecho trágico. O personagem funciona como veículo para a opinião de Woolf acerca das doenças mentais e do suicídio, dos quais ela própria foi vítima.
Em um projeto quase todo de mulheres, a ilustradora Sabrina Gevaerd age, ela própria, como um adendo à tradução, ao transpor a reflexão de Woolf sobre questões femininas (como a solidão nas relações e a autoestima) para desenhos excitantes e improváveis.
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